Vice-presidente da Academia Brasileira de Ciência alerta que a Amazônia abriga vírus desconhecidos que podem infectar as pessoas com o desmatamento. Ele diz que foi encontrado na floresta pelo menos oito variantes do Sars-CoV-2 recentemente, sendo algumas são novas e que ainda não haviam sido descritas no Brasil. Desmatamento ilegal na área de Uruará, no Pará.
Marizilda Cruppe/Greenpeace
Desmatamento, tráfico de animais e falta de políticas públicas que mantenham equilibrada a relação entre o homem e o meio ambiente podem favorecer o surgimento de novas pandemias, ainda no século 21. A Amazônia e sua biodiversidade abundante, mas negligenciada, é forte candidata a celeiro dessas doenças.
O biólogo Adalberto Luis Val vem alertando desde o início da pandemia de covid-19 sobre esses riscos: “É muito provável que várias das pandemias que a humanidade já enfrentou tenham sido causadas por micro-organismos que pularam da floresta para o homem”, disse Val ao InfoAmazonia.
Adalberto é um dos pesquisadores mais experientes e respeitados da Amazônia. Vice-presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC) para a Região Norte, atua no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) há mais de 40 anos.
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No local, comanda um dos mais modernos laboratórios e das mais produtivas equipes da região, que recebe pesquisadores do mundo inteiro em busca de compreensão sobre como a maior floresta tropical do mundo sobreviverá no futuro.
Para ele, o Brasil vem cometendo erros que podem comprometer a luta contra doenças que coloquem o mundo sob novas pandemias. Deixar “passar a boiada” é o caminho pra gente aumentar os processos de transmissão de vírus da floresta para o homem, destaca.
Leia abaixo a entrevista completa.
InfoAmazonia: Existe um risco real do surgimento de uma pandemia na Amazônia?
Na Amazônia, existem mais coisas do que aquilo que podemos ver, como plantas e animais terrestres e aquáticos, mas também um vasto, imenso, número de espécies que a gente não consegue ver, que são os micro-organismos, entre eles bactérias, fungos e vírus. De uma maneira geral, vários deles habitam o corpo de animais e plantas. Esses micro-organismos estão na floresta em equilíbrio, eles vivem onde encontraram os ambientes ideais para viver. É evidente que enquanto eles estiverem ali, sem nenhum distúrbio, está tudo bem e sob controle. Mas, se a gente começa a mexer com essa floresta, se a gente começa a entrar lá, derrubar essa floresta, a mudar o ambiente, contaminar a água, ter uma relação próxima com esses animais e plantas, evidentemente existe a possibilidade de alguns desses organismos “pularem” para o homem e causarem problemas extremamente sérios.
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Para responder de maneira direta a sua pergunta: se a gente não parar de interagir fortemente e de forma irresponsável com a floresta, derrubando, colocando os animais que vivem na floresta em desafios, interagindo com esses animais sem os devidos cuidados, traficando animais para outros lugares em sacos, caixas, mochilas, é óbvio que existe a possibilidade de algum desses micro-organismos “pularem” para o homem e causarem novas pandemias. E digo mais: a frequência com que isso tem acontecido nos últimos tempos tem aumentado significativamente de tal forma que isso nos coloca em uma luz amarela e com possibilidade de se tornar vermelha e nos colocar em um novo desafio pandêmico.
Quais são as possibilidades?
Existem vários estudos mostrando o número de novas cepas de vírus que nós temos na Amazônia. O Instituto Evandro Chagas, por exemplo, tem listado mais de 20 mil tipos diferentes de vírus. Vários desses vírus, pelo que já foi estudado até aqui, já causaram algum tipo de dano ao homem, algum episódio epidêmico em algum lugar da Amazônia. Isso quer dizer que nós temos que tomar muito cuidado, pois existe sim a possibilidade de nós termos novos processos epidêmicos a partir da interação com esses animais.
Na Dinamarca, surgiu uma nova cepa de Sars-CoV-2 a partir da infecção de visons. O senhor avalia como possível isso acontecer aqui?
Existe a possibilidade de acontecer, por várias razões. Até pouco tempo, não conhecíamos vírus transmitidos por plantas, mas existe um trabalho recente sobre uma espécie de vírus transmitido por uma espécie de pimenta. Não é aqui na Amazônia, mas é muito provável que também tenhamos coisa semelhante aqui, porque a gente só conhece uma pontinha da diversidade que existe na região. Nós já tivemos outras situações de vírus transmitidos de animal para animal e muitos foram sacrificados. Um exemplo disso é a gripe suína [do vírus H1N1], que atingiu o homem também. Mas existe a transmissão de zoonoses entre animais silvestres que foram domesticados para servir de alimento ao homem. Isso favorece um sistema de ponte, que é quando o vírus “pula” dos animais para o homem.
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Essas situações podem provocar mutações?
Recentemente, nós ficamos sabendo da existência de, pelo menos, oito variantes do Sars-CoV-2 circulando na Amazônia. Dentre essas, algumas são novas e ainda não haviam sido descritas no Brasil, ou seja, apareceram a partir da interação com populações humanas aqui na região em função do ambiente, dos desafios e coisas desse tipo.
É importante que as pessoas saibam que o material genético dos vírus vai sempre mudando, é uma coisa selecionada. Mutações estão sempre acontecendo, mas algumas podem ser problemáticas como as patogênicas [infecciosas], outras podem ser menos ruins e deixar de causar problemas. As mutações podem ter um lado bom e ruim nessa história. Fato é que nós estamos vendo no caso do Sars-CoV-2 uma dinamicidade grande do processo de aparecimento de novas variantes.
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O risco de uma nova pandemia é apontado como iminente. Dizem que ela pode surgir nos próximos anos. Na sua opinião, ela pode ser evitada ou somente adiada?
Precisamos trabalhar para evitar. Adiar, significa que nós vamos viver o problema daqui a alguns anos. Temos que trabalhar na recomposição do equilíbrio do ambiente, temos que entender que somos parte desse mundo e não donos dele, não podemos fazer qualquer coisa. Temos que respeitar nossa relação com a floresta, pois, toda vez que a gente vai lá e derruba a floresta, nós estamos impondo um estresse àqueles organismos que vivem lá e eles respondem da melhor forma que podem. Portanto, eu diria que são várias as políticas necessárias para recompor esse equilíbrio.
Segundo, precisamos de políticas voltadas para a compreensão desses processos, que não é só a capacitação de pessoal em altos níveis, de doutorado ou pós-doutorado, na verdade precisamos de uma sociedade cada vez mais educada para se apropriar e usar as informações que temos produzido nos laboratórios, de maneira geral. Em terceiro lugar, temos que entender as verdadeiras vocações de determinados lugares e investir em transporte, comunicação e processos de saúde adequados, garantir segurança alimentar e assim sucessivamente. Então, para que a gente recomponha esse equilíbrio sistêmico de maneira geral, é necessário que tenhamos políticas nos vários estratos sociais, para que possamos trabalhá-los da melhor maneira possível. Do contrário, não tenho dúvidas de que o estresse que causamos aos ambientes nos expõe mais e mais a novas pandemias.
Onde nós, como sociedade, estamos falhando para evitar essa nova pandemia?
Em todos esses aspectos com falta de políticas adequadas. Deixar passar a boiada é o caminho para a gente aumentar os processos de transmissão de vírus da floresta para o homem, isso aumenta a possibilidade de novas pandemias.
A presença da covid-19 no estado do Amazonas tem apontado a necessidade de uma política de vigilância epidemiológica e de saúde diferenciada para a região. No entanto, existem deficiências de comunicação, infraestrutura e outras muito básicas que favorecem a ausência do estado em municípios do interior. O senhor acredita que a ciência e a educação podem apontar alguma solução nesse sentido?
Não se trata de fé cega na ciência, mas sim o único caminho. Não podemos tomar atitudes na base do achismo. A ciência tem um conjunto de verdades que assim o são até que elas sejam substituídas por outras novas, mas cientificamente provadas. Ciência e educação são fundamentais para esse processo.
Aprendemos isso há centenas de anos, mas estamos vendo acontecer novamente com o Sars-CoV-2. Precisamos ter mecanismos epidemiológicos mundiais, e acredito que também precisamos de um fundo [financeiro] mundial que possa manter essa vigilância epidemiológica e surtir algum efeito.
O que senhor acha que esta pandemia está ensinando ao mundo?
Solidariedade. Acho que o mundo está aprendendo que é preciso acreditar na ciência e a fazer colaborações nas pesquisas científicas. Vimos que tivemos avanços significativos a partir de processos colaborativos, que são extremamente importantes e que já fazem parte do processo científico, de uma maneira geral. Mas a pandemia está nos exigindo essa colaboração em todos os níveis sociais para uma vida mais tranquila, como o uso de máscaras, higienização das mãos e distanciamento social. Isso tudo é uma coisa que cada um faz para se proteger, mas, também, para proteger o próximo. No contexto geral, isso significa cooperação, colaboração, uma solidariedade para que todos juntos caminhemos para um novo momento.
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