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Por que 26 milhões de americanos enfrentaram fome em 2020: 'Só comparável à Grande Depressão'

Com pandemia, recessão, desigualdade e baixa cobertura social, EUA sofrem também com insegurança alimentar; segundo organização de combate a fome, 1 em cada 6 encontram problemas para ter o que comer. Bancos de alimentos têm garantido a alimentação de milhões de pessoas nos EUA
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Desde que a pandemia começou, Robin McKinney, de 47 anos, só consegue garantir comida para si, um neto e dois de seus sete filhos graças a instituições de caridade.
“É difícil fazer caber no orçamento, especialmente porque o preço da comida subiu tanto agora”, diz ela, citando o custo de alguns itens de mercado, como carnes, com alta de 25% em relação a 2019, ou ovos, 12% mais caros.
O alívio chega em uma caixa de papelão, uma vez por semana: frutas, legumes, macarrão, arroz.
“Antes era só de vez em quando que eu precisava desse tipo de ajuda, não toda semana como agora”, ela conta.
A história de McKinney se tornou a mesma de cerca de 26 milhões de adultos nos Estados Unidos depois de março de 2020. Dados de novembro do Censo do país indicam que é essa a quantidade de adultos que afirmam não ter tido alimento suficiente pelo menos uma vez na semana anterior à pesquisa — contra 19,5 milhões que viviam esse tipo de situação até março, no período pré-pandemia.
Mas segundo a Feeding America, maior organização de combate à fome dos EUA, com 200 bancos de alimentos espalhados por todo o país, esse número pode ser ainda maior: 54 milhões de pessoas, entre adultos e crianças, ou um em cada seis habitantes do país estariam diante da angústia cotidiana de talvez não ter o que comer.
Para Julia Wolfson, professora de políticas de saúde da Universidade de Michigan e especialista em fome, esses dados são comparáveis apenas com o que os EUA enfrentaram durante a Grande Depressão, de 1929.
“Em 2019, a insegurança alimentar estava em baixa (10,5%) em comparação com os últimos anos. E então a pandemia chegou, com a crise econômica, empresas fechando, pessoas perdendo seus empregos e crianças não podendo ir à escola. E todas essas coisas conduziram a níveis realmente críticos de insegurança alimentar, diferente de tudo que vimos em décadas anteriores, mesmo durante a grande recessão (de 2008/2009) quando a insegurança alimentar estava em cerca de 14%, 15%. Agora, dependendo da pesquisa, as estimativas de abril chegam a 38% de insegurança alimentar nos Estados Unidos”, afirma Wolfson.
‘Antes era só de vez em quando que eu precisava desse tipo de ajuda, não toda semana como agora’, relata Robin McKinney
Arquivo Pessoal
Pode parecer um contrassenso que no país mais rico do mundo a fome seja um grave problema social. Mas especialistas consultados pela BBC News Brasil afirmam que os EUA enfrentam um conjunto de fatores que explica o quadro: a pandemia, que já matou mais de 300 mil no país, desembarcou em um terreno com alta desigualdade social e um sistema de serviços sociais pouco robusto.
Nessas condições, um contingente grande de pessoas que estava na borda da rede de proteção foi lançada para fora dela tão logo a doença — e a recessão — assolou o território americano.
Tropeço no progresso
McKinney não está no pior lugar em que já esteve. Agente comunitária em um dos bairros mais pobres de Washington D.C., ela teve mais sorte que muitos dos seus vizinhos, que perderam o emprego. Mas descontados os custos da hipoteca, água, luz e gás, tem sobrado cerca de US$ 100 para a família passar o mês. Dados do censo americano indicam que para afugentar o risco da fome, os McKinney precisariam ter ao menos duas vezes mais do que essa sobra.
O buraco para a família, no entanto, já foi muito mais profundo. Mãe solteira, há cinco anos, ela e os sete filhos eram moradores de rua.
“No Natal de 2017 eu dei aos meus filhos o melhor presente da vida: uma casa”, ela conta. McKinney conseguiu um emprego como motorista de transporte público para pessoas com deficiência e se inscreveu em programas sociais de moradia e apoio à população de baixa renda. Com isso, conseguiu fazer um financiamento imobiliário.
Seu progresso pessoal coincide com um período de crescimento constante da economia americana e de pleno emprego no país. A pandemia de Covid-19, no entanto, interrompeu abruptamente o ciclo de prosperidade tanto para ela quanto para seu país. Os EUA mergulharam em uma recessão, com uma contração da economia de 32,9% no segundo trimestre de 2020 (o pior dado desde 1947) e a taxa de desemprego passou de 3,5% em fevereiro de 2020 para 14,7% em abril do mesmo ano.
Ainda em março, o Congresso americano aprovou um pacote de US$ 2,2 trilhões em socorro à economia americana — o maior da história do país. A lei previa pagamentos individuais de US$ 1,2 mil para milhões de pessoas, além de auxílio-desemprego e interrupção de cobrança de dívidas estudantis e de ordens de despejo. Tudo isso, no entanto, não impediu que muita gente dependesse da caridade alheia ou mesmo passasse fome.
Pra piorar, conforme o pacote de alívio anterior expirava, a administração federal atrasou em meses uma nova reedição da medida. Em meio à campanha eleitoral presidencial, republicanos e democratas não concordavam sobre o tamanho do auxílio a ser ofertado à população: os primeiros defendiam um auxílio mais enxuto, os segundos queriam ajuda mais polpuda.
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Cori Bush, congressista americana democrata eleita pelo Estado do Missouri expressou sua frustração com o presidente Trump e os colegas do Legislativo diante da demora no socorro à população. Via Twitter, ela afirmou que “43 milhões de pessoas correm o risco de ser despejadas já que a moratória do aluguel vai expirar. Eu vivi em um carro com meus dois bebês por meses. Eu preparei mamadeira em um banheiro do McDonalds. Se as nossas “lideranças” entendessem essas dificuldades como eu entendo, não haveria depende sobre a extensão do auxílio”.
Quando finalmente um acordo bipartidário foi alcançado — com um pacote de cerca de US$ 900 bilhões e previsão de cheques de US$ 600, além de novas moratórias de aluguel para cidadãos — e enviado à mesa do presidente Donald Trump para a assinatura, na véspera de Natal, a lei voltou a emperrar.
Trump chamou o pacote, negociado por seus correligionários, de “desgraça”; ele disse que provisões previstas a instituições culturais e auxílio a países estrangeiros eram “desnecessárias”, que queria que os cheques para os americanos necessitados fossem mais polpudos — de US$ 2 mil — e ameaçou não sancionar a lei. No último domingo, dia 27, no entanto, o mandatário, derrotado na eleição presidencial e que permanecerá menos de um mês no cargo, assinou a lei depois de ser pressionado pelos próprios republicanos, que disputam com os democratas dois assentos no Senado no Estado da Geórgia no começo de janeiro e podem perder a maioria na casa legislativa se não vencerem o pleito.
Especialistas veem no socorro federal um passo essencial para evitar que a situação se deteriore ainda mais e mais rápido para famílias americanas já vulneráveis, mas não apostam que esse segundo pacote, bem mais enxuto que o primeiro, possa conter a crise social.
É o que diz Ayana Bias. Ela é diretora de serviços voluntários de uma entidade chamada United Planning Organization (UPO), que atua há mais de 50 anos com famílias de baixa renda na capital americana. Originalmente, a entidade não tinha como foco principal a alimentação, mas a necessidade se impôs. Durante a pandemia, a UPO já forneceu mais de 40 mil refeições para pessoas em condição de rua e tem entregado 250 cestas básicas por semana.
“(Recebo) muitos rostos novos, muitos novos telefonemas, muitos novos e-mails, o dobro do que estávamos recebendo ou dos serviços que eram fornecidos antes. E as pessoas estão vindo de todos os lugares”, conta Ayana.
A entidade vive a aflição cotidiana de não ter recursos suficientes para manter o fluxo do auxílio. “Como a gente não é uma organização de alimentos, a gente se perguntava se tinha capacidade para fazer isso, principalmente durante a epidemia. Bem, nós temos os recursos e, independentemente de quanto você faça, muito mais precisa ser feito. Sabemos que, como as coisas estão agora, isso não parece que vai mudar de modo significativo em breve”, lamenta Ayana.
A fome em meio à riqueza
Segundo Wolfson, a deterioração social do país tem um duplo fator: de um lado, a desigualdade social, e de outro, a pobre rede de proteção social do país.
“Grande parte do mundo olha para os EUA e vê um país de grandes oportunidades. Mas esse também é um país com muita desigualdade social e desigualdade de renda. Há comunidades aqui que se parecem muito mais com áreas pobres do Brasil do que com essa imagem de EUA que se tem. Há uma pobreza muito grave”, afirma a professora da Universidade de Michigan.
Os números confirmam o argumento. De acordo com os dados do censo americano, lares latinos ou negros, como o de McKinney, têm entre 2 e 2,5 vezes mais chance de sofrer com insegurança alimentar do que domicílios de brancos. Uma em cada cinco casas de famílias negras enfrenta fome hoje nos Estados Unidos. Quadro semelhante acontece também para outros indicadores econômicos e sociais: a taxa de desemprego entre homens negros, por exemplo, é quase o dobro da registrada entre homens brancos nos EUA em 2020.
E nesse contexto, o sistema de seguridade social americano parece modesto demais para responder à questão, aponta Wolfson. O auxílio-desemprego, por exemplo, é extremamente limitado. Antes da pandemia, apenas 9% dos desempregados no Estado do Mississipi conseguiam acesso ao benefício. No Estado de Massachusetts, com a maior cobertura do tipo, pouco mais da metade das pessoas sem emprego podia recebê-lo. Embora tenha expandido o alcance do seguro-desemprego, os pacotes de alívio não garantiram que essa renda chegasse a todos os que perderam os empregos.
“Quando você compara a abordagem dos programas sociais que adotamos para as pessoas necessitadas em relação a países de mesma renda média, você percebe a diferença. Particularmente se você pensar nos países europeus, os EUA não têm serviço de creche público universal, não tem assistência médica universal e gratuita. E todas essas coisas criam uma carga financeira desproporcional para as famílias de baixa renda e em última instância levam à fome”, diz Wolfson.
O principal programa de auxílio no combate à fome, popularmente conhecido como “food stamps”, ou “vale-refeição”, é uma verba destinada a famílias de baixa renda para que comprem itens como carne, vegetais e cereais. O pacote assinado por Trump no último domingo prevê que US$13 bilhões irão diretamente para esse tipo de vale.
Diferente do Bolsa Família, que é um programa de transferência de renda, o dinheiro do food stamps, cujo nome oficial é Programa de Assistência à Suplementação Nutricional (SNAP, na sigla em inglês), só pode ser usado na compra de comida, o que deixa de fora uma série de necessidades que famílias pobres podem ter em relação a outros itens.
“No momento em que você calcula o aluguel, os impostos, as despesas com alimentação e qualquer outra necessidade que você possa ter, como um seguro de saúde, além do ‘me dê, me dê, eu quero’ dos filhos, então para o cidadão comum, que sai diariamente para trabalhar, pode ser um desafio apenas colocar comida na mesa. Porque sempre há uma necessidade. Até mesmo ter uma poupança é irreal”, afirma Kiki McBroom, líder comunitária em Washington D.C., que trabalha para aliviar as dificuldades financeiras de famílias negras de baixa renda.
Com dois filhos adolescentes que tem criado sozinha, ela mesma enfrenta esse tipo de dificuldade que tenta ajudar a aplacar.
“Não estou dizendo que é impossível, mas exige muito sacrifício. E com frequência a renda acaba antes de você pagar todas as despesas”, diz McBroom.
Diante da privação de comida, especialistas relatam os sentimentos de desespero, vergonha e tensão que tomam os lares.
“Nossos entrevistados para as pesquisas se dizem extremamente estressados. Em março, uma delas me falou: ‘tenho vivido semana após semana, obtendo apenas o suficiente para tentar evitar pedir ajuda. E agora estou caindo pelas frestas do sistema de suporte, sem ajuda. Estou com muito medo”, afirma Wolfson.
Já McKinney, que enfrentou a vida nas ruas, vê a situação com resiliência: “Eu aprendi a fazer dar certo. E eu prometi aos meus filhos que não importa o que aconteça, eu confio em Deus, eu nunca estarei em posição de dizer a eles que ‘eu não posso fazer isso, eu não tenho isso pra te dar'”.
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