A extinção do peso argentino foi uma das principais propostas econômicas do novo presidente argentino, Javier Milei. Especialistas explicam como funcionou a antiga proposta de dolarização nos anos 1990 e quais seriam os desafios de fazer o mesmo hoje. Javier Milei, novo presidente da Argentina, ergue uma nota de dólar com seu próprio rosto durante a campanha eleitoral
Natacha Pisarenko/AP
Em seu discurso de posse neste domingo (10), uma das principais propostas econômicas de Javier Milei, novo presidente da Argentina, ficou de lado: a dolarização da economia.
O país vizinho sofre há décadas com uma inflação descontrolada, altas taxas de juros e consequente empobrecimento da população. Duas das soluções propostas por Milei durante a campanha eram um abandono do peso argentino e o fechamento do Banco Central.
Na posse, o presidente citou apenas que a Argentina passará por um período difícil e que “não existe solução sem atacar o déficit fiscal”. A controversa proposta de adotar o dólar sumiu.
Se der seguimento à ideia, não será a primeira vez que a Argentina recorre à estratégia. Na década de 1990, durante o governo de Carlos Menem, o então ministro da economia, Domingo Cavallo, desenhou um pacote de medidas para equilibrar a difícil situação da economia, e que dolarizou oficialmente o país.
Porém, o Plano Cavallo deu errado. Poucos anos depois, a Argentina precisou voltar a ter uma moeda própria, e que acabou muito desvalorizada.
Entenda, a seguir, como funcionou o plano, quais suas semelhanças e diferenças com a ideia de Milei de dolarizar a economia.
Javier Milei faz 1º discurso como presidente da Argentina
Os princípios do Plano Cavallo
Antes da década de 1980, a Argentina chegou a ser uma das maiores potências do mundo, mas viu sua situação deteriorar durante e após a ditadura militar. Foram milhares de mortes, uma guerra perdida para a Inglaterra e uma corrosão das reservas internacionais. A inflação disparou, o desemprego cresceu.
Em 1985, o governo da época criou uma nova moeda, o austral, e determinou o congelamento dos salários, dos preços e do câmbio — o que funcionou no curto prazo, mas não com o passar dos anos, já que os próprios empresários voltaram a subir seus preços para gerar mais receita, levando a uma nova escalada da inflação.
Em 1990, a dívida externa do país era de cerca de US$ 62 bilhões e a inflação anual ultrapassava os 2.000% — a nível de comparação, Milei herda em 2023 algo em torno de 140%.
O Plano Cavallo, implementado em 1991, foi um conjunto de medidas que visava combater a hiperinflação e estabilizar a economia. Ficou determinada a criação de uma nova moeda, o peso conversível, que teria paridade de um para um com o dólar, a partir de 1992. Para comprar um peso, era necessário desembolsar 10 mil austrais, que era o quanto valia a moeda nacional à época.
Para que a paridade fosse possível, a Argentina precisou arrecadar uma grande quantidade de dólares. Foi realizada, então, uma série de privatizações para aumentar as reservas internacionais, junto com uma abertura da economia para que produtos de fora entrassem no país.
A iniciativa foi amplamente apoiada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que era um dos principais credores da dívida externa da Argentina, e não enfrentou protesto popular no início.
As empresas privatizadas pertenciam a setores estratégicos, como energia e telecomunicações, por exemplo. No auge do Plano Cavallo, entre 1992 e 1998, o país contou com a entrada de mais de US$ 60 bilhões só pelas privatizações, que atingiram cerca de 90% das empresas públicas da época, segundo o FMI.
Já os produtos importados passaram a inundar o mercado argentino, em especial do setor têxtil, indústria de calçados, eletrônicos e automobilístico.
Produzidos com mais eficiência e em larga escala, em países como nos Estados Unidos e China, os importados faziam com que os produtores nacionais não pudessem aumentar seus preços, porque perderiam competitividade e espaço no mercado.
“Apesar de inicialmente ter trazido estabilidade, o plano também gerou dependência do dólar e desequilíbrios estruturais, contribuindo para a crise econômica posterior”, comenta Rodrigo Reis, especialista em relações internacionais do Instituto Global Atittude.
O professor Paulo Feldmann, da FIA Business School e da FEA-USP, comenta que, apesar do ministro da Economia Domingo Cavallo ter uma má fama atribuída ao fracasso da tentativa de dolarização, “ele não foi um ministro ruim só por isso, mas sim por uma série de razões”, pois o plano que criou desconsiderou a realidade socioeconômica do país, aumentou o desemprego e fez disparar o índice de pobreza.
Proposta de Milei previa o fim do peso argentino, mas assunto foi deixado de lado desde a sua posse no domingo
Natacha Pisarenko/AP
Por que a ideia não funcionou?
Ao mesmo tempo em que a Argentina aumentava sua dependência por dólar, o governo decidiu aderir ao Consenso de Washington, um pacote elaborado pelo Tesouro dos Estados Unidos, FMI e o Banco Mundial, com “soluções” para o controle da inflação e outros problemas econômicos de países emergentes.
Além da privatização e abertura econômica, as medidas previam redução de impostos para importação e diminuição de investimentos na indústria nacional. A promessa era de que os países passariam a gastar menos com infraestrutura e incentivos, e poderiam destinar recursos para áreas essenciais.
O professor Feldmann pontua que as principais medidas foram adotadas, além da Argentina, por Brasil e outros países da América Latina. E que aqueles que tinham uma indústria mais aquecida, passaram por problemas de competitividade com os produtos importados.
Na Argentina, a situação foi pior no setor automotivo e têxtil, com as fábricas nacionais perdendo muita força e observando o desemprego aumentar. Simultaneamente, as empresas que foram privatizadas passaram a enxugar boa parte do quadro de funcionários.
A taxa de desemprego do país subiu de 7% em 1992 para 18,3% em outubro de 2001, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Junto com o alto nível de desemprego, a Argentina viu seu indicador de pobreza crescer de 24,1% em 1992 para 34,32% em 2000, e voltou a enfrentar uma crise econômica forte.
A falta de investimento do governo para gerar receita dentro do próprio país, “a falta de políticas complementares para combater a recessão — como investir em políticas sociais que auxiliassem os desempregados — e a rigidez na implementação das medidas sem considerar as consequências das privatizações e abertura econômica contribuíram para a falha do Plano Cavallo”, explica Reis.
A crise levou ainda a um nível de investimento estrangeiro reduzido e, consequentemente, uma quantidade menor de dólar entrando nas fronteiras. E o momento de moeda americana valorizada acentuou a saída de recursos.
Assim, o peso conversível voltou a ser apenas o peso e perdeu sua paridade fixa com o dólar em 2002, ano dos famosos panelaços no país.
Um apoiador do novo presidente da Argentina segura uma nota de 100 dólares com uma imagem de Javier Milei durante a campanha
Agustin Marcarian / Reuters
Dá para dolarizar a Argentina hoje?
Embora os cenários sejam parecidos, com inflação elevada e pouca confiança dos investidores internacionais, a Argentina que Milei pega não é a mesma da época do Plano Cavallo.
“A crise atual é multifacetada: desequilíbrios fiscais, inflação persistente e falta de confiança. Além disso, a dolarização demandaria um ajuste estrutural profundo”, comenta Rodrigo Reis.
Milei já afirmou, em seu primeiro discurso como presidente empossado, que a economia argentina passará por um duro período de choque.
“Não há solução que evite atacar o déficit fiscal. Dos 15 pontos de déficit, 5 correspondem ao Tesouro Nacional. A solução implica um ajuste fiscal no setor fiscal público, que recairá sobre o Estado e não sobre o setor privado”, afirmou Milei no domingo (10).
O que se espera desse início de governo, então, é uma forte redução nos gastos públicos para que o país consiga equilibrar suas contas. Até o segundo trimestre deste ano, as dívidas externas somavam US$ 276,2 bilhões, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INDEC).
Milei já adiantou que o choque pode levar a um aumento do desemprego e do índice da pobreza.
O professor Paulo Feldmann, da FIA Business School, comenta que o país não tem outras possibilidades de conseguir dinheiro, como fez na época do Plano Cavallo. Então, como só os Estados Unidos podem emitir dólar, a Argentina depende que o Tesouro americano coloque mais moeda para circular.
As reservas internacionais do país estão vazias e o próprio Milei disse, em seu discurso, que não há dinheiro. Assim, o primeiro desafio para a dolarização argentina hoje é, justamente, conseguir a quantidade de dólares suficiente para dar conta de toda a dinâmica econômica.
Milei pintou o quadro catastrófico da Argentina e a herança maldita para anunciar ajuste e choque na economia
Reis acredita, ainda, que, “para uma dolarização saudável, Milei deve considerar políticas que promovam estabilidade e confiança. Primeiramente, é essencial um equilíbrio fiscal, controlando gastos públicos e promovendo responsabilidade fiscal”.
“Além disso, um sistema financeiro robusto e regulamentado é fundamental, juntamente com medidas para garantir a competitividade e diversificação da economia”, afirma o internacionalista.
São tarefas difíceis, pensando que tornar um país realmente mais atrativo para receber investimentos é um trabalho de longo prazo, enquanto um mandado presidencial dura apenas quatro anos.
Países dolarizados
Outros países da América Latina já decidiram dolarizar a economia. O Panamá, por exemplo, tem duas moedas oficiais: o dólar e a balboa, que tem paridade fixa com a moeda norte-americana. Diferente da Argentina, porém, o Panamá tem uma relação comercial muito íntima com os Estados Unidos, além de ser um paraíso fiscal, o que acaba inundando o país de dólares.
Equador e El Salvador, países com alto endividamento, também são dolarizados. Mas, para Feldmann, eles são exemplos práticos de que a dolarização tende a não trazer benefícios de longo prazo, porque a economia fica dependente das decisões de política monetária dos Estados Unidos.
Em outras palavras: os rumos das economias dolarizadas dependem de decisões do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), que pouco se importa com o ciclo econômico de países latinos.
Se os Estados Unidos estiverem em um momento de inflação alta, por exemplo, e o Fed optar por subir os juros, o movimento natural é que o dinheiro de investimentos e da própria população migrem para os títulos públicos americanos, que estarão com uma boa rentabilidade.
Isso desaquece o consumo não apenas no país, mas também em qualquer outro que use o dólar. E vice-versa. Se o Fed decidir cortar juros para estimular a atividade econômica americana, pouco importa se países dolarizados precisem conter o avanço dos preços internamente.
Feldmann, da FIA Business School, destaca que o país latino fica debilitado para decidir sobre sua política econômica, que é composta pelo fiscal (arrecadação e gastos), monetário (juros e inflação) e cambial (controle da moeda).
“Se uma dessas ‘subpolíticas’ está na mão dos Estados Unidos, o país fica capenga, porque se você mexe em uma, afeta também a outra”, diz.
Sobre a possibilidade de Milei realmente conseguir dolarizar a Argentina e ter um processo bem-sucedido, os dois especialistas consideram que isso não deve acontecer no curto prazo.
Primeiro porque a maioria do Congresso argentino não é da base do novo governo, o que dificulta a costura para a aprovação de qualquer projeto — principalmente os mais ousados. E também porque, no decorrer do tempo, os argentinos podem chegar à conclusão de que os benefícios poderiam ser limitados.
“A dolarização poderia trazer estabilidade inicial, mas a longo prazo limitaria a capacidade do governo de controlar a política monetária e fiscal, além de aumentar a dependência do dólar. A Argentina precisa fortalecer sua própria moeda, investir em políticas econômicas sólidas, atrair investimentos e promover a estabilidade política para superar seus desafios econômicos estruturais, em vez de optar pela dolarização”, ressalta Reis.
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