Uma das coisas mais positivas dos estudos e reflexões a respeito de um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, que está longe de ser a qualquer custo, é a possibilidade de ampliar o espectro de soluções. Não há uma só. Assim como os problemas não são, também, numa única via.
Não se pode pensar em livrar a Amazônia do desmatamento sem fazer o link necessário: há, ali, não apenas uma biodiversidade riquíssima que deve ser preservada. Há vidas humanas, na ordem de cerca de 30 milhões, que também necessitam ser respeitadas e têm direito a dignidade e ao bem estar de qualquer cidadão que vive nas grandes cidades.
Faltam obras de saneamento no Ceará
Kleber Gonçalves/SVM
Passemos ao ponto principal deste texto, os centros urbanos.
Para algumas pessoas que vivem longe deles, morar neles pode ser um canto de sereia, uma meta, um sonho a ser alcançado. Mas viver numa grande cidade exige enfrentamentos diários para quem faz contato com o chão que pisa e não tem recursos que permitem viver em carros, shoppings e outros locais devidamente blindados pelo capital. E, sim, pode ser mais rico em acontecimentos que tornam a vida mais criativa.
Um desses grandes desafios é o saneamento básico. Como já foi noticiado, aqui no Brasil a construção civil avançou 1,9% no segundo trimestre deste ano de 2019, e houve uma certa comemoração pelo feito. Como sou uma pessoa caminhante, no meu microespaço consigo ouvir mais as ferramentas elétricas funcionando, o que dá para ter uma ideia sobre a evolução das obras internas. São pessoas que, pelo menos aparentemente, conseguiram juntar algum dinheiro para pequenos consertos ou melhorias em casa.
Mas tem também os grandes empreendimentos, prédios grandes subindo aos céus, o que demonstra uma quantidade razoável de empregos, pelo menos temporariamente.
Como disse no início, porém, pensar em um desenvolvimento de forma sustentável é perceber, até neste micro sinal de melhora na economia, um espinho.
Pois é possível pensar que, para erguer mais prédios num bairro já bastante habitado, precisa-se de um Estudo de Impacto Ambiental rigoroso. Neste estudo, é fundamental que se saiba em que condições está, por exemplo, a rede de esgotos. Será que ela vai suportar mais carga sem ficar prejudicada?
Dados do Instituto Trata Brasil mostram que 36 municípios das cem maiores cidades do Brasil têm 60% da população com coleta de esgoto. Um cenário nada sustentável, independentemente de elevação de qualquer índice medidor de riqueza.
Neste sentido, uma pesquisa que acaba de sair do forno, feita pelo WRI Ross Center for Sustainable Cities, coletou os dados referentes aos serviços de saneamento mundo afora e constatou que, em média, 62% dos esgotos e resíduos humanos são gerenciados de maneira insegura em vários pontos da cadeia de serviços de saneamento em 15 cidades no hemisfério sul
Rio de Janeiro e São Paulo estão entre elas. O acesso ao saneamento é geralmente mais baixo no sul da Ásia e na África subsaariana. Em três cidades – Colombo, no Sri Lanka; Caracas, na Venezuela e Karachi, no Paquistão – os pesquisadores descobriram que nenhum, absolutamente nenhum, lixo humano era –gerenciado com segurança. Em cinco dessas 15 cidades não há nem gestão para isso nas áreas governamentais.
Ou seja, nesses lugares as pessoas agem mais ou menos como se não houvesse lixo, como se o simples fato de acionar a descarga (quando existe) já livrasse os humanos de se preocuparem com seus restos deixados no planeta. Não é assim, como se sabe.
A pesquisa mostra que, globalmente, o número de moradores urbanos que carecem de saneamento gerenciado com segurança aumentou de 1,9 bilhão em 2000 para 2,3 bilhões em 2015, custando US$ 223 bilhões por ano em custos de saúde e perda de produtividade e salários.
Nas quinze cidades estudadas, as famílias que não estavam conectadas a um sistema de esgoto davam um jeito para se livrar do problema. Fossas sépticas ou latrinas, drenos para despejar resíduos humanos não tratados ou parcialmente tratados em drenos pluviais e cursos de água. Em alguns casos, os residentes recorriam à defecação a céu aberto.
Câmara conclui votação de novas regras para o saneamento básico
As cidades incluem Bengaluru, na Índia; Caracas, na Venezuela; Cochabamba, na Bolívia; Colombo, no Sri Lanka; Daca, em Bangladesh; Kampala, em Uganda; Karachi, no Paquistão; Lagos, na Nigéria; Maputo, em Moçambique; Mumbai, na Índia; Mzuzu, no Malawi; Nairobi, no Quênia; Rio de Janeiro, e São Paulo no Brasil; Santiago de Cali, na Colômbia.
“Nenhuma cidade pode ser saudável ou ter sucesso a longo prazo sem fornecer a seus habitantes acesso universal a serviços de saneamento seguros e acessíveis. Mas a questão recebeu muito pouca atenção da maioria dos governos e agências de ajuda, especialmente para as áreas urbanas mal atendidas”, escreve David Satterthwaite, principal autor e pesquisador sênior do Instituto Internacional para Meio Ambiente e Desenvolvimento no texto que apresenta a pesquisa.
A análise do WRI também descobriu que é caro para as famílias cuidares de suas fossas sépticas ou latrinas. Elas exigem esvaziamentos regulares, o que custa dinheiro. Como as famílias não têm recursos, acabam deixando os poços inundares, contaminando a água potável, ou contratam trabalhadores manuais mais baratos que jogam lixo humano não tratado em cursos d’água próximos, em terras agrícolas ou em outros lugares.
Numa favela de Lagos, na Nigéria, por exemplo, os pesquisadores descobriram que, para construir uma latrina ventilada, a pessoa precisa gastar mais de 600% da renda média mensal de uma família.
A pesquisa do WRI, que tem muito mais detalhes do que estou trazendo aqui, pode ser acessada por qualquer cidadão comum interessado em fazer contato com o entorno. E pode ser acessado também por governantes que não estejam apenas implicados em negociatas, preocupados em matar pessoas – sejam marginais ou inocentes – em comunidades em nome de uma sensação de segurança que nem sempre é verdadeira.
“Por muito tempo, os formuladores de políticas urbanas e os governos fecharam os olhos para o problema do lixo humano não tratado nas cidades e fingiram, por ser tratado pelas famílias e fora da vista, que o problema foi resolvido. Mas o fato é que isso representa um enorme risco à saúde pública, além de um empecilho para a economia”, escreve Victoria A. Beard, coautora da pesquisa, pesquisadora do WRI Ross Center for Sustainable Cities e professora de planejamento urbano e regional da Universidade de Cornell.
Seguem as sugestões dos pesquisadores: ampliar a rede de esgotos para banheiros domésticos, comunitários e públicos; na ausência de sistemas de esgoto, apoiar e regular as opções de saneamento no local, como fossas sépticas e latrinas; apoiar a melhoria participativa em toda a cidade de assentamentos informais que atendam à necessidade de serviços de saneamento; tornar uma variedade de serviços de saneamento mais acessíveis para famílias de baixa renda.
E, só para lembrar: para solucionar o problema, os pesquisadores estimam algo em torno de US$ 300 bilhões. Ou seja: é possível.
Basta ter vontade política e um olhar cuidadoso para o humano.
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