Perguntas como ‘você tem filho, vai deixar com quem para trabalhar?’ e ‘se ele ficar doente, o que você faz?’ são comuns nas entrevistas; prática é considerada discriminatória, dizem especialistas. A headhunter Aline Souza participou de entrevistas que abordaram o tema maternidade tanto como profissional de RH quanto como candidata a vaga de emprego
Arquivo pessoal
A headhunter e consultora de carreiras Aline Souza, de 32 anos, sentiu na pele a discriminação de ser mãe de dois filhos em processos seletivos de emprego. E chegou a ser demitida depois que a dona da empresa em que trabalhava “descobriu” que ela era mãe.
Em um dos processos de seleção, Aline passou por uma entrevista individual para o cargo de analista de RH em que ouviu perguntas como:
Você tem filho?
Você vai deixar com quem?
O seu marido faz o quê?
Se você tiver uma reunião importante e seu filho estiver doente, o que você vai fazer?
Você vai ficar para reunião e vai conseguir alguém para ficar com teu filho ou vai ter que socorrer essa criança?
A gente faz muitas viagens, como você vai fazer?
Você tem uma rede de apoio com que possa contar?
Como essa criança vai ficar quando você trabalhar?
Depois de passar por essa entrevista, ela e mais quatro candidatas foram separadas numa sala. As três que eram mães ficaram de um lado e as outras duas que não tinham filhos do outro. As que seguiram para a fase seguinte da seleção eram solteiras, não eram mães e não planejavam ter filhos. Na época, Aline tinha 26 anos e seu primeiro filho, 2 anos de idade.
“Algumas perguntas são frustrantes. A mulher não deveria escolher entre maternidade e carreira porque todo mundo tem uma mãe. Não deveria ser tão complicado de a empresa aceitar que aquela mulher tem filhos ou planeja tê-los”, diz.
Aline conta que também acompanhou seleções em que mulheres por volta de 35 anos foram questionadas se queriam ter filhos porque o planejamento da empresa era de contratar alguém que não poderia ter filhos no prazo de um ano. “Então estava explícito que ela deveria escolher ser mãe ou continuar a sua carreira”, afirma.
A dificuldade de conseguir recolocação no mercado de trabalho fez com que ela decidisse abrir sua própria consultoria de recursos humanos em Brasília, há quase dois anos. Contribuiu para essa decisão uma demissão relacionada à sua maternidade. Após um mês no emprego, ela disse para a proprietária da empresa que precisava sair no horário naquele dia para buscar seu filho mais novo, que na época tinha 8 meses de idade.
“A resposta dela foi: ‘ah, você tem filho pequeno, então a gente vai ter que rever isso aí’. Quando cheguei no outro dia para trabalhar, ela me demitiu. Então até entre mulheres não tem essa compreensão, essa empatia. Me senti injustiçada. Porque nesse pouco tempo sempre fiquei até mais tarde, chegava bem cedo, e nesse dia em especial precisei sair no horário certo”, diz.
Ela conta que tentou por muito tempo recolocação no mercado formal, tanto depois de ter o primeiro quanto o segundo filho, que hoje têm 4 e 7 anos. “Optei por empreender. Foi uma saída que encontrei para ter a flexibilidade de cuidar dos meus filhos, de gerar uma renda e não passar por mais esse tipo de situação nas entrevistas”.
‘Quando desliguei a câmera, comecei a chorar’
Amanda Guedes tem três filhas e está em busca de recolocação desde janeiro
Arquivo pessoal
A analista financeira Amanda Guedes, de 30 anos, está desempregada desde janeiro. Ela tem três filhas, de 10, 5 e 3 anos.
Amanda tem participado de vários processos de seleção desde então em Fortaleza. E em todos a questão da maternidade é abordada.
“Uma das principais características dessas entrevistas são as perguntas invasivas, como quem fica com minhas filhas enquanto trabalho, se eu moro perto dos meus pais, qual a profissão do pai delas e como ficaria a questão de levar as crianças ao médico”, afirma.
Ela conta que em março ouviu de uma profissional de RH que era uma excelente profissional, mas que seu único ponto negativo era ter três filhas pequenas.
“O que mais me deixou frustrada foi isso ter vindo de uma mulher que possivelmente devia ser mãe também. Na hora fiquei tão sem reação que só sorri e agradeci a oportunidade e, quando desliguei a câmera, comecei a chorar. Isso me assusta toda vez que vou fazer parte de uma seleção, já sinto que vou ser eliminada por ser mãe de três crianças”, diz.
Depois dessa situação, ela conta que já diz aos recrutadores que tem uma boa rede de apoio, que mora perto dos seus pais que são aposentados e tem uma babá que mora com ela. Mas, mesmo dizendo que tem toda essa rede de apoio, para Amanda, a maternidade está prejudicando seu retorno ao mercado de trabalho.
“Até porque se não fosse empecilho não fariam essas perguntam tão invasivas. Uma psicóloga disse que era somente para cálculo de dependentes. Mas são poucos os que explicam a razão de entrarem nesse assunto”, afirma.
‘País machista’
A especialista em recolocação e carreira Taís Targa afirma que ainda existem muitas empresas que discriminam as candidatas que são mães.
“Muitas empresas não chegam nem a chamar para entrevista a candidata que é mãe ou que está numa idade fértil. Só que é difícil a gente saber e comprovar que é discriminatório, porque é preciso considerar algumas questões práticas”, diz.
Isso porque, em alguns casos, não há como a empresa deixar de abordar nas entrevistas questões que envolvam a rotina familiar das profissionais. “Como empresas que exigem que a profissional viaje a trabalho, que trabalhe aos finais de semana ou no horário noturno, que exige hora extra, que faz muitas reuniões”, pondera.
“Na verdade a gente está num país machista onde essas perguntas são feitas para as mulheres. E geralmente para homens não se pergunta coisas como com quem ele deixa seu filho, quem é responsável por levar as crianças na escola, como está sendo a rotina de home office, que horário ele tem disponível para trabalhar, que horário ele cuida das crianças”, aponta.
A headhunter Aline Souza concorda com Taís. “A responsabilidade de cuidar do filho é jogada só para a mãe de forma geral. Como se só a mãe tivesse que cuidar daquela criança. Então toda essa situação é muito difícil para nós que buscamos oportunidades e queremos retomar nossas carreiras e nos vemos impedidas pelo fato de termos filhos”.
Como falar da maternidade nas entrevistas
Taís afirma que sempre orienta suas clientes em recolocação a serem honestas nas entrevistas. Veja abaixo:
Se alguém perguntou se você tem filho e quem cuida deles, diga a verdade e mostre bastante segurança na hora de relatar isso.
Eu tenho filhos, mas tenho um parceiro e familiares que me ajudam.
Sempre trabalhei e gerei resultados, viajei pela empresa, sempre resolvi minha rotina doméstica e nunca o fato de ter filhos pequenos atrapalhou para que eu gerasse resultado.
Tenho condições de atender aos finais de semana e de viajar, desde que programado com antecedência.
Mostre segurança falando sobre a logística das crianças, porque é um detalhe prático que tem que ser conversado antes de ingressar nas empresas.
Taís considera invasivo a empresa perguntar se a mulher pretende ter filho. “Pode até perguntar do planejamento familiar, e a mulher também tem que ser honesta e verdadeira. Se pensa em engravidar, ela deve dizer que não tem obrigação de falar sobre isso, ou pode responder que está avaliando a questão. Se ela não tem 100% de certeza, então seria cabível também falar que ainda está avaliando essa questão do planejamento e estrutura familiar”, orienta.
Taís explica que há detalhes práticos em relação à carga horária, ao deslocamento e à rotina que devem ser abordados na entrevista de emprego.
“Imagina se a empresa contrata uma mãe sem perguntar nada e precisa que ela faça um treinamento fora por duas semanas. O que essa profissional vai fazer se não puder ir porque tem que ficar com o filho? Então isso pode ser abordado de outra forma, sem usar a palavra filho, com perguntas como você tem disponibilidade de viajar? Pode trabalhar aos finais de semana?”, diz.
Segundo a especialista em carreira, são questões de organização do trabalho que precisam ser faladas.
“Por exemplo, uma mãe que fica com o filho uma semana sim outra não e ela tem que ajudá-lo nas aulas online. Isso impossibilita que ela faça algumas atividades, e a empresa por outro lado tem uma necessidade, ela tem cliente para atender, tem linha de produção, ela simplesmente não pode falar que naquela semana não pode comparecer porque o filho está fazendo aula em casa e eu não tem com quem deixar”, diz.
Aline acredita que algumas empresas estão se conscientizando e dando benefícios como extensão de licença paternidade e berçários para funcionárias deixarem seus filhos. Além de contratar mulheres grávidas e não demitir após a licença maternidade.
“Mas a maioria infelizmente demite quando a mulher volta da estabilidade pós parto. Ou se uma mulher grávida se candidata a uma vaga de emprego nem segue no processo seletivo porque a empresa já fala que não será possível integrá-la à equipe, por mais competências que ela tenha. Ainda temos um longo caminho a percorrer e quebrar esse machismo estrutural que infelizmente permeia boa parte das organizações”, comenta.
Abordagem é discriminação, dizem advogadas
É discriminação as empresas abordarem a questão da maternidade nas entrevistas? Elas podem demitir funcionárias que são mães? Veja abaixo o tira-dúvidas com as advogadas de Direito do Trabalho Marcelise Azevedo e Lariane Del Vecchio.
As empresas têm a prerrogativa de abordar a questão da maternidade em entrevistas de emprego, mesmo que tenha cunho discriminatório?
Marcelise Azevedo: Não. Uma empresa não pode discriminar uma mulher pelo fato de ser mãe, até mesmo porque os cuidados com filhos não deviam ser exclusivos das mães e sim divididos com o parceiro.
Lariane Del Vecchio: Toda pergunta de cunho pessoal em uma entrevista de emprego deve ser evitada. A função do recrutador não é interferir nas questões pessoais, e sim buscar as habilitares e experiências. A Lei 9029 de 1995 também proíbe a exigência de atestado de gravidez e esterilização, entre outras práticas discriminatórias na relação jurídica de trabalho.
Essa abordagem contraria o que está na Constituição?
Marcelise Azevedo: Essa abordagem contraria o princípio da equidade e da não discriminação em razão do gênero.
Lariane Del Vecchio: O artigo 5 da Constituição fala da igualdade de direitos, da privacidade, inviolabilidade da honra, vida privada e intimidade. No artigo 7 é assegurado o direito a licença maternidade e o artigo 10 dispõe sobre a proibição da dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante.
A candidata pode denunciar as empresas à Justiça, tanto a contratante quanto a que faz a seleção? Precisa de provas e testemunhas?
Marcelise Azevedo: É uma prova difícil, que pode ser feita com testemunhas ou mensagens eventualmente trocadas com quem praticou a discriminação. E entendo que empresa contratante deve ser acionada preferencialmente, uma vez que parte dela a indicação do perfil. Porém, a empresa selecionadora, que aceita esse tipo de discriminação, também pode ser responsável.
Lariane Del Vecchio: Os empregadores devem agir com responsabilidade no processo de seleção, publicação do anúncio de vaga e admissão. Caso a candidata cumpra as exigências técnicas da função, presume discriminatória a dispensa. É importante também guardar como prova a mensagem ou e-mail com a resposta do processo seletivo que demonstra o motivo da não admissão. A lei considera sujeitos ativos dos crimes o empregador e o representante legal do empregador.
A empresa pode estipular que não vai contratar uma mulher que pretende ser mãe?
Marcelise Azevedo: A empresa não pode estipular que não vai contratar uma mulher que pretende ser mãe. É uma discriminação.
Lariane Del Vecchio: O princípio da igualdade e o da não discriminação estão expressos na Constituição. A CLT também prevê multas para esse tipo de discriminação.
A empresa pode demitir uma funcionária pelo fato de ela ter filho?
Marcelise Azevedo: A empresa não pode demitir uma funcionária pelo fato de ela ter filho. Isso também configura discriminação.
Lariane Del Vecchio: A estabilidade da mulher é desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, no mínimo, já que existem categorias que estipulam maior estabilidade. Uma mulher ser demitida pelo simples fato de ter um filho pode ser considerada dispensa discriminatória.
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