Embora alguns considerem a meta ilusória, os defensores da proposta afirmam que é essencial para preservar os sistemas naturais essenciais à própria vida no Planeta. A natureza está passando por um processo de extinção em massa à medida que habitats naturais são alterados pela atividade humana
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À medida que o homem continua a expandir rapidamente seu domínio sobre a natureza — desmatando e incendiando florestas, exterminando espécies e interrompendo funções do ecossistema — um número cada vez maior de cientistas e conservacionistas influentes acredita que proteger metade do Planeta de alguma forma será a solução para mantê-lo habitável.
A ideia ganhou notoriedade pela primeira vez em 2016, quando Edward O. Wilson, o lendário biólogo conservacionista de 90 anos, publicou a sugestão no livro Da Terra Metade: O nosso planeta luta pela vida.
“Agora temos medições suficientes das taxas de extinção e das prováveis taxas (de extinção) no futuro para saber que está se aproximando mil vezes do patamar que existia antes do surgimento da humanidade”, afirmou ele em entrevista ao jornal americano The New York Times em 2016.
Antes considerada uma mera aspiração, essa ideia tem sido levada a sério por muita gente — não apenas como um sistema de segurança para proteger a biodiversidade, mas também para mitigar o aquecimento global.
Uma das principais razões para a adoção dessas metas extremas de preservação é um relatório de 2019 da Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), que descobriu que mais de 1 milhão de espécies estão ameaçadas de extinção.
Conduzido por centenas de pesquisadores ao redor do mundo, o estudo é considerado a análise mais abrangente já realizada da situação da biodiversidade mundial.
Esse relatório concluiu, no entanto, que não são apenas as espécies que estão correndo risco.
A infinidade de funções essenciais à vida que essas espécies e ecossistemas exercem também estão ameaçadas — desde água e ar limpos até controle de enchentes e regulação do clima, assim como fornecimento de alimentos e uma série de outros serviços.
Preservar grandes extensões de terra pode ajudar a estabilizar ecossistemas vitais, como florestas tropicais, que atuam como reservatórios de carbono
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Além disso, alguns cientistas têm receio de que a superfície da Terra tenha sido tão alterada que o ecossistema global possa estar perto de um ponto crítico, que desestabilizaria o clima e os sistemas biológicos que sustentam a vida, causando uma instabilidade ambiental generalizada — e talvez até desastrosa.
A ambiciosa meta de proteger e restaurar sistemas naturais em grande escala é compartilhada por vários grupos e indivíduos.
A Wyss Campaign for Nature está trabalhando em parceria com a National Geographic Society para apoiar os objetivos do movimento “30×30”, uma iniciativa altamente ambiciosa que visa proteger 30% do planeta, em terra e mar, até 2030.
Outra organização chamada Nature Needs Half atraiu cientistas e grupos conservacionistas, incluindo o Sierra Club, para pressionar pela proteção de 50% do planeta até 2030.
O Parlamento Europeu se comprometeu a proteger 30% do território da União Europeia, a restaurar ecossistemas degradados, adicionar metas de biodiversidade a todas as políticas do bloco e destinar 10% do orçamento para a melhoria da biodiversidade.
Nos EUA, políticos que trabalham com organizações conservacionistas introduziram recentemente uma resolução para angariar apoio para a proteção de 30% das áreas terrestres e marinhas do país.
A defesa dos direitos dos povos indígenas é fundamental para a proteção de alguns habitats naturais de maior biodiversidade do mundo, como a Amazônia brasileira
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Todos os olhos estão voltados agora para a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), um tratado multilateral criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para elaborar um plano de 10 anos para a biodiversidade.
A convenção de 2010 fez um apelo para que 17% das terras e 10% dos oceanos do planeta fossem protegidos de alguma forma até 2020. Essa meta não foi alcançada — cerca de 16% da superfície terrestre e menos de 8% dos ecossistemas marinhos foram protegidas.
Portanto, atingir a meta de 2030 exigiria quase o dobro de áreas protegidas em terra, e quatro vezes mais nos mares — tudo isso na próxima década.
É um desafio assustador, mesmo que haja boa vontade, uma vez que alguns países — sobretudo Brasil e Estados Unidos — se movem na direção contrária. O presidente Jair Bolsonaro tomou medidas que podem abrir a Floresta Amazônica para uma onda de desmatamento, exploração madeireira e desenvolvimento agrícola.
E no ano passado, o governo do presidente Donald Trump acabou com o Landscape Conservation Cooperative Network, um programa da era Obama que criou 22 centros de pesquisa para combater problemas de conservação no país.
O governo Trump também está abrindo, ou propondo abrir, grandes áreas de terras protegidas — como o Refúgio Nacional da Vida Selvagem do Ártico, no Alasca — para perfuração de petróleo e gás, além de outras atividades de exploração de recursos naturais.
Estima-se que os EUA sozinho perde um campo de futebol de natureza a cada 30 segundos. Muito mais terras estão sendo perdidas na Amazônia brasileira, com mais de 25 quilômetros quadrados de floresta tropical sendo queimados ou desmatados todos os dias.
Mesmo assim, há motivo para ser otimista.
O relatos de mudanças climáticas em grande escala, incluindo o derretimento do gelo marinho do Ártico, assim como os holofotes voltados para a ativista climática sueca Greta Thunberg, de 17 anos, parecem ter despertado de alguma forma as pessoas.
“Os jovens em geral estão focando nas questões ambientais”, diz Brian O’Donnell, diretor da Campaign for Nature.
“E estamos vendo muito menos uma abordagem isolada, aqueles que trabalham com clima e aqueles que trabalham com conservação estão trabalhando mais juntos.”
Alguns países já estão avançando em direção a metas ambiciosas. No Canadá, o primeiro-ministro, Justin Trudeau, se comprometeu com a iniciativa Pathway to Canada Target 1, que visa atingir as metas do movimento 30×30.
Mas, ao mesmo tempo, Trudeau se comprometeu a construir o oleoduto Trans Mountain para transportar óleo das areias betuminosas de Alberta para os portos do Pacífico, um movimento que gerou críticas ferozes dos líderes dos povos nativos locais e ambientalistas.
A Costa Rica, Colômbia e outros também países também estão aumentando seus esforços de conservação.
As metas ambiciosas de campanhas como 30×30 e Half Earth enfrentaram críticas. Alguns questionam se o foco em preservar até metade da superfície da Terra contribuirá o bastante para proteger a biodiversidade remanescente.
Encontrar maneiras de as pessoas viverem dentro de reservas ambientais, em vez de tentar mantê-las do lado de fora, pode ajudar a preservar sua biodiversidade
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Em um artigo de 2018, Stuart Pimm, biólogo conservacionista da Duke University, nos EUA, entre outros, argumentam que a maior parte da biodiversidade se encontra em regiões tropicais, e grande parte dela já está fragmentada.
Segundo eles, a proteção de grandes áreas naturais em regiões praticamente intocadas — como a Floresta Boreal do Canadá — traz benefícios. Mas as grandes paisagens selvagens remanescentes estão localizadas principalmente em regiões temperadas, o que não ajuda muito na proteção da biodiversidade, uma vez que, sem dúvida, a maioria das espécies do mundo está nos trópicos.
“Isso levanta a questão de quanta biodiversidade iremos proteger se a tendência de proteger lugares selvagens continuar,” diz Pimm.
Em artigo publicado ano passado na revista científica Nature Sustainability, uma equipe de pesquisadores argumenta que proteger vastas áreas da Terra poderia, de forma conservadora, afetar 1 bilhão de pessoas e, em alguns casos, aumentar a pobreza.
“As questões sociais precisam desempenhar um papel mais proeminente se quisermos gerar uma conservação eficaz que funcione tanto para a biosfera quanto para as pessoas que a habitam”, afirma Judith Schleicher, pesquisadora da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que liderou o estudo.
Embora a conservação tenha aspectos positivos tremendos, acrescenta ela, “certas formas de conservação por isolamento podem fazer com que as pessoas sejam deslocadas de suas terras ancestrais e tenham acesso negado a recursos dos quais dependem para sobrevivência”.
Há quem conteste esse argumento.
“Quando o IPBES foi lançado, dizia que 1 milhão de espécies estavam ameaçadas”, afirma Gary Tabor, presidente do Center for Large Landscape Conservation em Bozeman, Montana, nos EUA.
“Mas não se trata apenas de salvar espécies, trata-se de manter os processos ecológicos que sustentam toda a vida na Terra. São 1 milhão de espécies interagindo entre si que limpam sua água, fornecem solo fértil, que eliminam o CO2 do ar — é isso que você perde.”
A prevenção de doenças, por exemplo, é um importante serviço prestado pelo ecossistema de sistemas naturais intactos.
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Conforme as pessoas desmatam terras selvagens ou comem animais selvagens, as doenças que essas criaturas carregam podem ultrapassar a barreira das espécies e se espalhar para as sociedades humanas. A pandemia de coronavírus, por exemplo, pode ter se originado em morcegos.
Segundo Tabor, a natureza também precisa ser integrada aos lugares onde as pessoas vivem.
“O maior mal entendido sobre o Half Earth é de que haverá uma construção bizarra onde as pessoas vivem de um lado e a natureza do outro”, diz ele.
“Isso não funciona em termos de função ecológica, e não funciona porque há valor de conservação fora das áreas protegidas.”
Conservacionistas afirmam ainda que grande parte de alcançar as metas de 30% ou 50% se refere a apoiar terras indígenas e áreas de conservação comunitárias.
Os povos indígenas ocupam ou controlam 28% das terras do planeta, e mais de 40% das áreas protegidas, segundo o relatório do IPBES, copresidido por Sandra Díaz, professora de ecologia da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina.
Quais são as principais barreiras para reservar 30%, quem sabe até 50%, do planeta para a natureza, mesmo com a população global crescendo rapidamente?
“A maneira como nosso sistema agrícola mundial funciona”, diz O’Donnell, da Wyss Campaign for Nature.
“Incentiva o uso cada vez maior de terras para pecuária e agricultura. Esse é um fator-chave.”
A Wyss Campaign for Nature está priorizando soluções de financiamento para proteção ambiental.
“Estamos estudando o custo da proteção e também observando qual seria o custo se você não protegesse essa quantidade de terra, em termos de serviços ambientais perdidos, água limpa e atividade pesqueira”, explica O’Donnell.
“Há um custo para conservar a terra, e outro custo se não conservarmos.”
E transformar terras em reserva ambiental não é de forma alguma o fim da história. A Campaign for Nature está estudando possíveis fontes de financiamento para que os países possam pagar pelos custos de gerenciamento e proteção dessas terras.
Entre as muitas ameaças que grandes extensões de terra enfrentam, incluindo aquelas ostensivamente sob proteção, estão a construção de estradas e a fragmentação.
Segundo Tabor, o número de estradas pavimentadas deverá dobrar nos próximos 25 anos, abrindo grandes áreas para a exploração ilegal de recursos, caça clandestina e outras ameaças.
“As pessoas irão primeiro para a [floresta] boreal ou para a África Central”, para proteger grandes extensões da natureza, acrescenta ele.
“Mas a maior parte onde há biodiversidade está em áreas fragmentadas. Para ter natureza efetiva nessas áreas, teremos que ter uma estratégia de conectividade”.
O’Donnell concorda que há enormes desafios.
“Assim como a crise climática exige grandes mudanças sistemáticas nas próximas décadas, o mesmo acontece com a biodiversidade”, diz ele.
“Há muitas outras coisas competindo por dinheiro e atenção.”
* Este artigo foi publicado originalmente pela revista americana Yale e360 e republicado pela BBC Future com autorização — leia o texto original aqui.
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