Países que fazem parte do Sahel estão plantando árvores para criar o que eles afirmam ser a maior ‘estrutura viva’ do mundo, a chamada Grande Muralha Verde. O Saara e o Sahel têm muito mais árvores do que se pensava
Martin Brandt/BBC
Você deve prestar muita atenção por onde anda em Paga, no extremo norte de Gana. Se caminhar pela parte errada desta pequena cidade, na fronteira com Burkina Faso, corre o risco de ficar cara a cara com um crocodilo.
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A população local cultivou uma relação assustadoramente próxima com esses répteis, que vivem em lagos “sagrados” ao redor da cidade.
Reza a lenda que o primeiro líder de Paga foi salvo por um crocodilo durante uma expedição de caça – e decretou que daquele dia em diante nenhum membro do seu povo faria mal aos animais.
Hoje, os moradores ainda cuidam dos crocodilos, alimentando e protegendo os animais. Aparentemente, as mulheres podem lavar suas roupas nas lagoas sem medo, e algumas almas corajosas até nadam com eles.
Os turistas, atraídos pela promessa de ver crocodilos “amigáveis”, são incentivados a posar para fotos tocando os répteis. É supostamente seguro abordar os animais, desde que você faça isso por trás.
Mas Paga e seus crocodilos enfrentam a ameaça do avanço do deserto ao seu redor. Localizada no extremo sul da região semiárida do Sahel, faixa de terra ao sul do deserto do Saara que se estende de leste a oeste do continente africano, a área circundante de Paga é coberta por um solo arenoso que se dispersa facilmente.
As árvores retorcidas e os arbustos atrofiados, perfeitamente adaptados para lidar com os períodos de seca que atingem a região, ajudam a fixar o solo.
Mas a crescente população de Paga e das cidades vizinhas levou à derrubada de muitas árvores, para fornecer combustível e material de construção, além de abrir caminho para terras agrícolas.
Sem a vegetação para fixar o solo, ele é simplesmente varrido pelo vento e pelas fortes tempestades. Com isso, as plantações e a vegetação selvagem ficam sem opção para criar raízes. E a terra está se transformando em um deserto.
“Há muita degradação no nosso meio ambiente, porque há muito desmatamento”, explica Julius Awaregya, fundador de um grupo ambiental em Paga.
“Isso tem sérias implicações para as futuras gerações, por isso precisamos conservar o que temos.”
Awaregya está atualmente ajudando a coordenar os esforços para conter o avanço do deserto – construindo, entre outras coisas, um muro.
Mas não se trata de um muro qualquer, feito de tijolo, pedra ou concreto. Este muro é formado por troncos, galhos e folhas – uma barreira verde viva para deter o deserto quase sem vida.
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No dia em que conversamos, Awaregya já havia enviado membros de sua equipe para três vilarejos próximos com caminhões cheios de mudas para plantar novas árvores junto às comunidades locais. Eles estavam plantando mudas de acácia, mogno, nim e, mais importante, baobá.
As árvores adultas de baobá são um verdadeiro espetáculo. Com seus troncos grossos e bulbosos, cobertos por galhos que lembram raízes apontando para o céu, elas têm uma aparência de outro mundo. Capazes de armazenar água nos troncos, elas estão perfeitamente adaptadas às condições adversas e secas da savana, podendo viver até 2 mil anos.
Quando as árvores completam cerca de 200 anos, começam a dar frutos – quando maduro, o fruto tem uma casca marrom aveludada que contém uma polpa seca esbranquiçada de gosto cítrico e azedo dentro.
As mudas que a equipe de Awaregya está plantando são, portanto, um investimento para o futuro.
Embora pareça pouco apetitosa, a fruta é apreciada pela população de Paga. Tradicionalmente, os frutos maduros eram colhidos pelas mulheres locais, que os usavam no preparo de molhos, doces e mingaus.
Mas agora essa colheita está se tornando muito mais organizada. De dezembro a abril, grupos de mulheres das aldeias se aventuram no meio do mato com longas varas para colher os frutos dessas árvores.
As frutas que elas levam de volta para suas aldeias são selecionadas e abertas – a polpa desidratada é, por sua vez, triturada em um pilão ou por máquinas. O pó resultante é ensacado e enviado para a Europa, onde será transformado em smoothies, sucos, sorvetes e alimentos saudáveis.
Tudo isso faz parte do mercado global de baobá, avaliado em US$ 3,5 bilhões, e que deve ultrapassar US$ 5 bilhões nos próximos cinco anos.
O alto teor de vitamina C, cálcio, magnésio, potássio e ferro da fruta atraiu o interesse de várias empresas – como Coca-Cola, Costco, Innocent Smoothies, Suja Juice e Yeo Valley – que lançaram produtos à base de baobá.
Isso deu nova importância a uma árvore que era vista, em grande parte, como tendo pouco valor econômico em países como Gana.
“O baobá tem muito potencial”, diz Andrew Hunt, cofundador e executivo-chefe da Aduna, marca de alimentos naturais que vem trabalhando com pequenos produtores de pó de baobá em Gana e Burkina Faso.
“É uma árvore muito especial na África e tem um valor cultural enorme – em alguns lugares é sagrada, e a população local a vê como lar de espíritos ancestrais. Mas tinha pouco valor econômico e estava sendo derrubada para dar lugar a plantações comerciais.”
Agora, com a crescente demanda por baobá como suplemento alimentar, as comunidades que vivem nas paisagens áridas onde essas árvores crescem estão sendo recompensadas por protegê-las.
A Aduna paga cerca de 45 cedis (aproximadamente R$ 40) por um saco de 38 kg de fruta de baobá, além do valor adicional (gratificação) pela produção orgânica, que eleva o pagamento total para cerca de R$ 60, segundo Hunt.
A renda média em muitas aldeias é inferior a R$ 254, por isso o dinheiro faz uma diferença significativa para as mulheres envolvidas na colheita.
Ele também financiou o plantio de cerca de 5 mil novas árvores de baobá no ano passado – e espera dobrar essa quantidade neste ano.
Grande Muralha Verde tenta conter o avanço do deserto do Saara
O esquema gera uma importante contribuição para um projeto mais ambicioso, conhecido como a Grande Muralha Verde. Uma tentativa de construir uma barreira de 8.000 km que cruza o continente africano de leste a oeste para conter o avanço do deserto do Saara.
Embora a extensão do deserto aumente e diminua de acordo com a estação do ano, o declínio das chuvas, combinado com o desmatamento e a degradação do solo, têm feito a área que ele ocupa aumentar a cada estação.
Ao longo do século passado, o deserto do Saara cresceu mais de 7.600 km² por ano – e agora está 10% maior do que era em 1920. O avanço se deu de forma acentuada sobretudo em direção ao sul, onde se espalhou por mais de 554.000 km² do Sahel no mesmo período. E hoje cobre uma área de 9,4 milhões de quilômetros quadrados.
É um fenômeno que está sendo replicado em outros lugares. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 120.000 km² de terra são perdidos globalmente a cada ano em decorrência da desertificação.
“A desertificação se espalha mais como um câncer do que como uma onda ou um incêndio na floresta”, explica Ibrahim Thiaw, secretário-executivo da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês).
“O prejuízo para a economia global é estimado em US$ 1,3 bilhão por dia devido à perda de terras agrícolas, para pastagem de gado, à perda de terras que poderiam ser usadas para turismo e habitação humana.”
Iniciado em 2007 pela União Africana, o projeto da Grande Muralha Verde é uma tentativa conjunta de retardar e até mesmo reverter o avanço do maior deserto quente do mundo.
Com o apoio da UNCCD, mais de 20 países ao longo do Sahel estão plantando árvores para criar o que eles afirmam ser a maior “estrutura viva” do mundo.
Mas o muro está longe de ser uma cerca viva que se estende por todo o continente. Aproximadamente US$ 8 bilhões foram investidos na adoção de novas práticas sustentáveis de gestão da terra e na descoberta de maneiras de melhorar a qualidade do solo.
Para isso, eles recorreram ao conhecimento dos povos indígenas para encontrar métodos nativos de cuidar da terra.
Em Burkina Faso, Mali e Senegal, por exemplo, os agricultores estão reabilitando a terra usando o zai, prática tradicional que prevê construir linhas, faixas e semicírculos de pedras para ajudar a reter a água durante os períodos de seca, permitindo que ela penetre no solo.
Em outras partes de Gana, os moradores plantam capim-elefante – também usado para tecer cestas – como uma forma de fixar o solo.
Mas o ponto central do projeto são as árvores. O Senegal sozinho já plantou mais de 12 milhões de árvores resistentes à seca em pouco mais de uma década desde o lançamento da Grande Muralha Verde.
“Cerca de 300.000 km² de terras degradadas foram restauradas em 20 países”, diz Thiaw.
“Mas estamos apenas no começo de uma longa jornada. Não acho que será concluída durante a minha existência ou dos meus filhos. Precisamos fazer muito mais, e precisamos fazer em grande escala. Até agora, trabalhamos apenas com pequenos projetos liderados por comunidades.”
A UNDCC estabeleceu a meta de restaurar 1 milhão de km² de terras na África até 2030. É uma meta ambiciosa, mas eles esperam que ela ofereça maior segurança alimentar ao Sahel, melhorando o solo para o cultivo e, ao mesmo tempo, ajudando a capturar milhões de toneladas de carbono da atmosfera.
O sucesso tem sido relativo, e a iniciativa vem sendo criticada pelo progresso lento. Fora da África, a tentativa semelhante da China de plantar barreiras florestais para conter o avanço do Deserto de Gobi também teve efeitos limitados.
Na verdade, há indícios de que as tempestades de areia do Deserto de Gobi podem ter aumentado, em vez de diminuído.
Mas é neste ponto que a UNDCC espera que a nova demanda global por baobá possa ajudar. Embora seja muito bonito pedir aos agricultores locais que plantem, protejam e cultivem árvores, isso sempre vai competir com a necessidade de comida e renda.
Mas se as árvores forem capazes de ajudar a gerar renda, então há uma razão convincente para deixá-las crescer e se espalhar.
A expectativa é que produtos como a fruta do baobá possam incentivar grandes multinacionais de alimentos a investir nos esquemas de plantio e colheita, como os que estão sendo montados nas comunidades ao redor de Paga.
“Os governos não podem fazer isso sozinhos”, afirma Thiaw. “Precisamos envolver o setor privado para que eles possam perceber que é rentável restaurar a terra.”
E o potencial da região vai além do baobá. As folhas da moringa, conhecida como acácia branca, também estão ganhando popularidade como alimento saudável. Nativa da região árida dos Himalaias, essa árvore é bem apropriada para ser cultivada nas condições encontradas em várias partes do Sahel. A manteiga de karité, popular em cosméticos e hidratantes, vem da noz de árvores que também crescem na região.
Andrew Hunt, da Aduna, também vê como promissora a plantação de gramíneas tradicionalmente cultivadas na África Ocidental, como o fonio, um tipo de grão semelhante ao cuscuz marroquino – que pode ser uma forte concorrência para outros grãos da moda, como a quinoa.
“O baobá é apenas um ingrediente dentro de um cenário muito maior”, diz Hunt.
Mas há quem se preocupe com o que pode acontecer se grandes empresas multinacionais e fabricantes de alimentos começarem a criar uma demanda mais ampla por essas lavouras.
Embora seja capaz de gerar renda e atrair investimentos valiosos para a região, também existe o risco de causar exploração excessiva do solo ou até mesmo de criar monoculturas – como as vastas plantações de dendê que hoje dominam grande parte do sudeste asiático, da América Central e da América do Sul.
Isso poderia exacerbar alguns problemas que estão causando a desertificação desde o início, alerta Lindsay Stringer, especialista em degradação da terra e água da Universidade de Leeds, no Reino Unido.
“Embora a desertificação em si possa ocorrer em uma escala local, os fatores políticos e econômicos por trás destas decisões podem operar em escalas muito maiores, em locais bem distantes de onde a desertificação acontece”, diz.
“É fácil para pessoas que não estão nas terras áridas serem totalmente ignorantes em relação ao que acontece nestas regiões como resultado do comportamento do consumidor”.
Segundo ela, estratégias que oferecem múltiplos benefícios podem ser mais adequadas. O plantio de árvores frutíferas pode ajudar a estabilizar o solo, criar sombra e fornecer alimentos para a população.
Conceder o direito à terra à população local também pode ajudar, uma vez que deixa as pessoas mais dispostas a investir em maneiras sustentáveis de gestão do solo.
“Precisamos mudar alguns sistemas criados pelo homem, em vez de apenas plantar coisas para resolver o problema da desertificação”, acrescenta Stringer.
Há ainda outras abordagens que podem ter impacto. A energia solar, por exemplo, pode reduzir a necessidade de madeira como combustível e, portanto, a necessidade de cortar árvores.
A cidade marroquina de Ouarzazate, frequentemente afetada por tempestades de areia do Deserto do Saara, tem aproveitado a energia solar para tratar águas residuais e, em seguida, usá-las para irrigar a terra ao redor.
Em Burkina Faso, microbiologistas como Forfana Barkissa estão inoculando pés de feijão e árvores de acácias com diferentes tipos de bactérias e fungos para ver se podem ajudá-las a se tornar mais resistentes à seca.
De volta a Paga, os agricultores também estão tentando produzir biocarvão (biochar), usado para melhorar a fertilidade do solo, a partir de resíduos das lavouras após a colheita.
Para as mulheres que colhem baobá para ser exportado para a Europa e os EUA, também houve ganhos. Algumas cooperativas conseguiram triciclos para facilitar o transporte dos sacos cheios de sementes de baobá pelo mato.
Além disso, as mulheres estão se tornando mais empoderadas em suas comunidades – e estão se envolvendo mais em decisões dentro de suas próprias famílias.
“Antes, era difícil para as mulheres dizerem que queriam fazer as coisas porque não tinham acesso fácil à renda”, diz Julius Awaregya.
“Agora elas têm renda própria e estão tomando decisões a nível familiar.”
As comunidades locais também estão mudando.
“Eles não queimam mais o mato ou ateiam fogo”, acrescenta Awaregya. “Criaram suas próprias leis comunitárias para proteger as árvores.”
Com mais árvores e um solo melhor, pode ser que o povo de Paga e seus crocodilos ainda vivam juntos por um bom tempo.
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