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Meio Ambiente

MP da regularização fundiária entrega 566 títulos de terra, mas servidores dizem que processo de análise não foi agilizado

Texto precisa ser aprovado pelo Congresso até o próximo dia 19, para não caducar. Para governo e ruralistas, medida modernizou a legislação e criou a responsabilidade de preservação para os beneficiados. Para ambientalistas, ela premiou grileiros. A Medida Provisória 910, que trata da regularização fundiária no país e foi publicada em 11 de dezembro, precisa ter aval do Congresso até o próximo dia 19, quando termina o prazo de 120 dias para análise do texto, conforme a Constituição. Mas a aprovação ainda é motivo de impasse.
Entenda a MP e veja o que ela mudou
Desde a publicação da MP, até o dia 4 deste mês, 566 famílias em 8 estados foram beneficiadas pela mudança (leia mais abaixo), informou ao G1 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia subordinada ao Ministério da Agricultura.
A estimativa do governo é que mais de 970 mil famílias que vivem em áreas sem regularização serão contempladas pela Medida Provisória.
Governo federal e Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) alegam que a “MP Fundiária” trouxe mais agilidade no processo de regularização de pequenos agricultores e garante a preservação do meio ambiente ao dar responsabilidades previstas na lei aos ocupantes de terras públicas.
Para ambientalistas, agricultores familiares e pesquisadores, no entanto, ela é a “MP da Grilagem”, porque, segundo eles, facilita a regularização de áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia – região onde há mais terras públicas disponíveis para ocupação.
Além disso, para o sindicato que representa os peritos federais agrários do Incra (SindPFA), a medida não trouxe mais agilidade na concessão dos títulos. De acordo com a entidade, a falta de estrutura para os servidores permanece a mesma.
O que aconteceu até agora
Desde a publicação da Medida Provisória, o Incra informou ao G1 que, até o dia 4 deste mês, foram emitidos 566 documentos de posse da terra, beneficiando a mesma quantidade de famílias.
A maioria das propriedades tem menos do que 4 módulos fiscais, segundo o governo. Todas as regularizações até agora ocorreram em estados da Amazônia Legal: Pará, Amazonas e Rondônia lideram a lista de regularizações.
“A concessão de títulos de terra vai beneficiar, em sua maioria, o pequeno produtor, que terá benefícios e obrigações. Ele terá acesso a programas de apoio à agricultura familiar e ao crédito rural e deverá cumprir com a legislação ambiental”, diz o Incra em nota.
Total de documentos de posse emitidos desde a publicação da MP 910
G1 Agro
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“Nós estamos migrando do século 19 para o século 21. Todos os procedimentos eram feitos de forma manual. Isso torna impossível a regularização “, disse o presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, durante audiência pública no Congresso, em fevereiro.
Melo Filho se refere à adoção do Sigef Titulação, um sistema desenvolvido pelo governo para a autodeclaração de posse e que foi implementado com a MP 910. Esse instrumento digital utiliza imagens via satélite para que os servidores do Incra façam a análise dos pedidos (veja o vídeo abaixo).
Segundo o Incra, com a MP, os servidores terão acesso aos bancos de dados da Receita Federal, Ibama, Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, entre outros, para a checagem de informações sobre a propriedade e o interessado, para decidir se concede ou não a posse da terra.
Vídeo do Incra mostra como é feita a análise de regularização fundiária
Para o SindPFA, que representa os peritos fiscais agrários do instituto, as mudanças não foram tão grandes, especialmente na Amazônia, onde desde 2009 já existia a possibilidade de fiscalização remota.
O sindicato afirma que falta estrutura para os servidores. “Em estados da Amazônia, por exemplo, a internet não permite (a análise de imagens via satélite). Por isso, entendemos que não adianta mudar a lei para facilitar a titulação sem investimento em tecnologia e capacitação.”
Outro exemplo é que existe uma fila de processos físicos que precisam entrar no Sigef Titulação. “Só em Rondônia precisamos inserir, em um primeiro momento, quase 8 mil processos (no novo sistema).”
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Já, nas discussões no Congresso Nacional, são dois os principais pontos de atrito entre os setores ruralista e ambientalista e que foram antecipados pelo G1, em dezembro, quando a MP 910 foi publicada.
1. Aumento no período de ocupação
A MP mudou uma legislação aprovada em 2017, no trecho que trata do período em que ocupantes de terras públicas com até 2.500 hectares (3.501 campos de futebol) poderiam solicitar o registro da propriedade.
A MP estabeleceu dois novos limites de tempo:
Os ocupantes que estavam na terra até 5 de maio de 2014 conseguem a regularização da terra de graça ou mais barato, pagando até 50% da tabela de preços do Incra. Antes, isto só era aplicável somente a quem estava na terra até 21 de julho de 2008;
Em outro cenário, quem chegou ao local até 10 de dezembro de 2018 poderá ter a posse da terra se pagar o valor máximo da tabela do Incra. O prazo anterior era até 22 dezembro de 2011.
O que diz o governo:
Em dezembro, após a publicação da MP, o G1 questionou o Incra sobre a ampliação do prazo. Em nota, o instituto afirmou que a mudança tinha como propósito ampliar o acesso à regularização.
“A intenção é ter o máximo de imóveis regularizados de modo que se tenha maior controle e governança sobre as ocupações incidentes em terras públicas”, disse o Incra.
O G1 tentou conversar com o presidente do órgão, Geraldo Melo Filho, entre os dias 6 e 8 deste mês. O Incra sinalizou que a entrevista poderia ser feita, mas não houve confirmação até a publicação da reportagem.
O que dizem os ambientalistas:
Dados do governo mostram que o desmatamento na Amazônia, região onde há mais terras públicas disponíveis para ocupação, voltou a crescer a partir de 2017.
Assim, ao ampliar a possibilidade de regularização para quem ocupava terras até 2018, a MP abriria uma brecha de regularização para quem desmatou ilegalmente neste período, na avaliação do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
É justamente este o motivo pelo qual os ambientalistas chamam o texto de “MP da Grilagem”.
Para Brenda Brito, pesquisadora do Imazon, a ampliação do prazo acaba se tornando uma espécie de subsídio para grileiros. Isso porque, segundo ela, a tabela de preços do Incra tem valores menores do que os praticados no mercado, ou seja, sairia mais barato conseguir a terra pela regularização fundiária.
“Ao premiar o desmatamento ilegal com o título de terra, o governo sinaliza que o crime compensa, o que pode estimular ainda mais invasões de terras públicas”, afirma a pesquisadora.
“O governo argumenta que não é imobiliária para cobrar um valor alto, mas é um bem público e não deu oportunidade igual de competição (para comprar a terra)”, diz a pesquisadora.
O que dizem pequenos agricultores:
“Não é por falta de legislação que não fazemos a regularização fundiária, as legislações anteriores dão plenas condições de regularizar”, diz Elias Borges, dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que representa agricultores familiares e assentados.
“Não se fazia a regularização por outras questões: não ser prioridade do governo e falta de estrutura para o Incra”, acrescenta.
Nova proposta de texto derruba mudança
Na tentativa de acabar com o impasse no Congresso, o novo relator, deputado Zé Silva (SD-MG), elaborou uma proposta diferente da que foi feita pelo primeiro indicado, o senador Irajá Abreu (PSD-TO), cujo relatório não agradou à bancada ambientalista.
Nesse novo relatório de Zé Silva, foi retirado o trecho que amplia o prazo de ocupação, permanecendo o que já estava definido na lei aprovada em 2017, ou seja, até dezembro de 2011.
Porém, a saída deste trecho não está garantida: isso só poderá ser confirmado após a votação do texto.
Mesmo assim, somente a proposta já agradou a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, entidade que reúne setores do agronegócio e ambientalistas. Para ela, a decisão do deputado fortalece o Código Florestal, que é a lei que trata da preservação do meio ambiente no país.
“Com isso, rompe-se o ciclo de periodicamente postergar a data limite de ocupações que podem ser regularizadas e, dessa forma, é enviado um sinal forte aos invasores de que essa situação não irá mais se repetir ou prolongar.”
2. Aumento da área de autodeclaração
Autodeclaração de posse na MP da Regularização Fundiária
Rodrigo Sanches/G1
O segundo ponto de disputa relacionada à MP 910 é a autodeclaração – que é quando o interessado ganha o registro após dizer onde é a propriedade, qual o tamanho e há quanto tempo ocupa a área.
Ela chegou a ser cogitada pelo governo, mas, após críticas, a ideia foi abandonada. Porém, o texto original da MP propõe quase a mesma coisa, atualizando uma lei de 2009 que já previa a regularização “por meio de declaração do ocupante, sujeita à responsabilização penal, civil e administrativa”.
Ou seja, o suposto proprietário é quem vai declarar que tem a posse da terra, com a ressalva de que isso será analisado – e confirmado ou não – pelos técnicos do Incra por meio de um sistema, o Sigef Titulação, que foi implementado após a MP.
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Antes da medida, apenas agricultores com áreas até 4 módulos fiscais (de 20 a 440 hectares) tinham direito a fazer essa forma de autodeclaração. Agora, esse limite subiu para 15 módulos fiscais (de 75 a 1.650 hectares), o que, segundo o governo, é considerada uma propriedade média.
Módulo fiscal (MF) é uma unidade em hectare definida pelo Incra para cada município do país, que varia de 5 a 110 hectares.
A preocupação de ambientalistas e pesquisadores sobre este ponto é ceder uma área tão grande, de de cerca de 2 mil campos de futebol, na Amazônia sem uma avaliação presencial.
Na discussão no Congresso, o último relatório do deputado Zé Silva diminui de 15 para 6 módulos fiscais a área permitida para a autodeclaração. Porém, isso só poderá ser confirmado após a votação da proposta.
O que diz o governo:
Segundo o Ministério da Agricultura, desde o início de validade da MP 910, até o dia 4 deste mês, além dos 566 títulos já emitidos, o Incra tem na fila 25.993 processos autodeclarados que estão na fase de análise digital, sendo 1.192 em etapa final.
De acordo com o governo, a maior parte dos pedidos neste sistema é para propriedades até 350 hectares, ou seja dentro do universo de até 4 módulos fiscais.
Questionado, o Incra informou que não há risco de uma área de 1.650 hectares, tamanho máximo dos 15 módulos fiscais, ser regularizada na Amazônia sem fiscalização presencial.
“Em todos os estados que compõem a Amazônia Legal, a média do módulo fiscal é de 73 hectares, portanto, (15 módulos fiscais) equivale a 1.095 hectares”, diz o Incra em nota enviada ao G1.
Outra ponto é que a MP exige que o proprietário faça adesão ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é a porta de entrada da legislação ambiental brasileira, o Código Florestal.
Ao seguir essa lei, o produtor rural da região amazônica deverá preservar 80% da floresta, podendo cultivar em apenas 20% da área.
“Desse total (1.095 hectares), apenas 219 hectares poderão ser usados na produção. O restante, obrigatoriamente, deve ser preservado”, completa o Incra.
O que dizem pesquisadores, ambientalistas e pequenos agricultores
Apesar disso, estudos da Universidade de São Paulo (USP) e da Federal de Minas Gerais (UFMG) concluíram que não era necessário aumentar este limite para acabar com o problema da falta de regularização fundiária no país.
Isso porque as 4.898 propriedades que têm mais de 4 até 15 módulos fiscais, que entraram na lista da autodeclaração com a MP, correspondem a apenas 4,5% do total que aguarda na fila do Incra para regularização.
As que têm até 4 módulos fiscais, e já estavam contempladas na autodeclaração, respondem por 95,3% dessa fila.
“Não faz sentido ampliar para 15 módulos fiscais se já resolvemos 95% do problema com propriedades até 4 módulos”, afirma Raoni Rajão, pesquisador da UFMG.
“(Para) O restante, quem está acima de 4 módulos, é viável utilizar os servidores do Incra, fazer um mutirão e inspecionar pessoalmente”, sugere.
Outro ponto destacado no estudo é que a área ocupada pelo total de propriedades que têm mais de 4 a 15 módulos fiscais é mais do que o dobro das menores somadas.
Juntos, os 102,9 mil imóveis com até 4 módulos fiscais correspondem a 7,57 milhões de hectares. Já as 4.898 propriedades que têm entre mais de 4 até 15 módulos ocupam 15,33 milhões de hectares.
“Nós vamos ter muitos pequenos produtores que vão ser beneficiados, não que necessitassem da MP, a lei anterior já dava conta, mas nós vamos ter também grandes com áreas maiores do que a soma dos pequenos”, avalia Elias Borges, da Contag.
“Não encontramos justificativas técnicas. É nesse pequeno percentual de imóveis que encontra-se o maior risco da MP se tornar uma medida de estímulo à grilagem”, diz a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.
Áreas sem regularização no Brasil
G1 Agro
O que dizem os ruralistas
“A MP busca regularizar o pequeno e o médio produtor. Na Amazônia Legal, o produtor tem que manter 80% de reserva legal pela lei. Na prática, dos 15 módulos fiscais, ele vai poder produzir em 3”, argumenta Rudy Ferraz, assessor jurídico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), adotando o mesmo discurso do Incra.
“Não se está beneficiando grandes produtores, apenas atendendo à Constituição, que prevê garantias para que existam as pequenas e médias propriedades rurais.”
Riscos de conflito
Para pesquisadores, agricultores familiares e ambientalistas, além do aumento de área permitida para a autodeclaração não ser uma necessidade, ainda pode estimular os conflitos no campo.
O argumento é que, na comparação com outro programa baseado na declaração do dono da terra, o CAR, que é exigido pela MP, já existem muitas sobreposições, especialmente na Amazônia.
Isso seria um indicativo de que mais de uma família reivindica a posse do terreno. Neste cenário, quando se aumenta a área sem vistoria presencial, a avaliação deles é de que se pode criar uma injustiça social.
Porém, a legislação já prevê que, em áreas onde que há conflito por terras, a autodeclaração não é permitida.
Mas o argumento de quem é contra é de que podem existir casos que ainda não foram relatados ao governo.
“A vistoria remota é fria, não tem a dimensão total do problema. Tem muitos agricultores que nunca fizeram um pedido, ou não tem cadastro. Também existem processos físicos que nunca foram digitalizados”, afirma Elias Borges, da Contag, que representa os agricultores familiares.
“Outro problema grande é que não dá para ver pistoleiro com imagem via satélite, ou seja, não dá para saber com certeza se é ou não uma área em disputa. Existe o risco de uma grande área ser titulada com outras famílias dentro”, afirma o pesquisador Raoni Rajão, da UFMG.
Ponto positivo: uso da legislação ambiental
Um avanço da MP 910, na opinião dos entrevistados, foi vincular o pedido do título da terra ao preenchimento do CAR, que serve como primeiro passo para que o produtor siga o Código Florestal
Assim, a propriedade é mapeada e é possível saber quanto foi desmatado legalmente e quanto foi derrubado ilegalmente.
Depois disso, se o produtor respeitou os limites de preservação, que variam conforme cada região do país, deverá manter a área. Se desmatou mais do que o permitido, ele adere ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) e se compromete a recuperar a área.
“O (novo) processo de regularização traz mais governança das terras e obriga o agricultor a se adequar à lei, de que é importante respeitar a legislação ambiental”, afirma Rudy Ferraz, da CNA.
Porém, para ambientalistas, a exigência do cumprimento da legislação ambiental na MP não é firme. Apesar de exigir o CAR, eles afirmam que não há nenhum outro ponto do texto que exija que o proprietário faça a recuperação ou manutenção das áreas de floresta.
Segundo Brenda Brito, do Imazon, antes da MP, se o dono da terra cedida pelo governo desrespeitasse a legislação, o título era cancelado.
Agora, com as mudanças e o que está em discussão no Congresso Nacional, se o ocupante da terra pública descumprir a lei ambiental e assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou fizer o PRA, a posse da terra se mantém.
“Qual a interpretação desta mudança? Que você pode desmatar, depois você assina um TAC ou faz o PRA, para dizer que você está seguindo a lei. Isso é totalmente contrário à lógica de preservação. Sem falar que TACs e PRAs não costumam ser monitorados”, explica.

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