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Mecanismo da PEC dos Precatórios facilita descumprimento da regra de ouro, apontam especialistas

Regra fiscal impede governo de se endividar para pagar despesas correntes. Para especialistas, na prática, dispositivo anula regra. Governo nega e diz que pretende gestão orçamentária. O Ministério da Economia incluiu na proposta de emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios um dispositivo que autoriza o governo a descumprir a regra de ouro já na aprovação do Orçamento. Atualmente, essa autorização é concedida somente se o Congresso aprovar crédito suplementar ou especial.
O dispositivo foi apontado por especialistas como um “jabuti”, ou seja, item estranho à proposta. A PEC busca parcelar precatórios – dívidas da União decorrentes de decisão definitiva da Justiça – a fim de abrir espaço no Orçamento para lançamento do novo Bolsa Família.
Durante as duas horas de entrevista coletiva de apresentação da PEC, na manhã desta terça-feira (10), o secretário especial de Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, não abordou o assunto.
A regra de ouro impede que o governo se endivide para pagar despesas correntes, como salários, aposentadorias, pensões, programas sociais e custeio da máquina pública (conta de luz e água, por exemplo).
A União só pode emitir dívida para pagar despesas correntes quando o Congresso autorizar. Para isso, o governo tem que enviar um pedido de crédito suplementar ou especial ao Congresso, indicando qual a margem de insuficiência da regra de ouro e quais despesas serão custeadas com a emissão de dívida.
O pedido de crédito precisa ser aprovado por, no mínimo, 257 deputados e 41 senadores. Em 2019, a aprovação do crédito suplementar atrasou e quase comprometeu o pagamento de despesas como Plano Safra 2019/2020, Benefício de Prestação Continuada (BPC), Bolsa Família, entre outros.
A PEC dos precatórios tem um dispositivo que libera o Executivo do cumprimento da regra de ouro por meio de autorização na Lei Orçamentaria Anual (LOA).
Ou seja, o governo vai simplificar o processo, ao prever já no Orçamento a autorização para emissão de dívidas para pagamento de despesas correntes, sem precisar negociar crédito suplementar ou especial.
Veja comentário do economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, sobre a PEC dos precatórios:
Ex-presidente do Banco Central sobre proposta de precatórios: ‘Tem um cheirinho de calote, é preocupante’
Repercussão
Para Felipe Salto, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado, o dispositivo, na prática, anula a regra de ouro.
“No lugar de revogar a regra, com transparência, ou de melhorá-la, a PEC simplesmente a anula. Isso porque o novo dispositivo introduzido no inciso III do artigo 167 vai permitir que, apenas com a aprovação do orçamento, a burla à regra de ouro já esteja abençoada”, afirma.
“Se aprovado como está na PEC, a regra, na prática, não existirá mais”, completa Salto. O governo nega. “A proposta de alteração do referido inciso não tem o condão de afastar o seu cumprimento”, diz o Ministério da Economia em nota enviada ao G1.
A pasta afirma que o objetivo do mecanismo é “melhorar a eficiência na gestão orçamentária ao manter a autorização de forma antecipada sob o escrutínio do Parlamento”.
O ministério diz que a regra atual, de submeter crédito suplementar para aprovação do Congresso – gera morosidade.
“A necessidade de se submeter a aprovação posterior pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta dos votos gera morosidade na disponibilização dos recursos para o financiamento das políticas públicas, não contribuindo para a melhor execução e qualidade do gasto público.”
O economista Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas, questiona se o Congresso vai concordar com esse argumento do governo.
“A regra de ouro já vinha sendo descumprida há três anos, mas com a autorização do Congresso, via crédito especial, como prevê o artigo 37 da Constituição. Resta saber se o Congresso concordará em abrir mão dessa formalidade”, afirma.
O governo argumenta que, caso a autorização orçamentária para descumprimento da regra de ouro seja insuficiente para custear as despesas correntes, o Executivo continuará enviado pedidos de crédito suplementar ou especial para pedir autorização para emitir mais dívida.
Desde 2019, o governo tem estourado a regra de ouro e pedido autorização do Congresso para financiar gastos correntes com emissão de dívida pública. Em 2019, o Orçamento previu que R$ 249 bilhões em despesas correntes, incluindo com benefícios previdenciários e programa Bolsa Família, precisariam ser pagos com emissão de dívida.
Em 2020, o governo estimou que precisaria de autorização para emitir títulos no valor de R$ 367 bilhões para pagar despesas correntes. A regra, contudo, acabou suspensa devido à pandemia de Covid-19. Em 2021, o Orçamento previu a necessidade de crédito de R$ 453 bilhões, mas, em junho, foi constada a necessidade de um crédito menor, no valor de R$ 164 bilhões.
Felipe Salto diz que a regra de ouro foi mal implementada no Brasil, mas tem uma razão para existir.
“A ideia é permitir dívida pública apenas para investir. Isto é uma forma de limitar o endividamento para pagar gastos correntes, como salários e outros, e também de estimular o investimento”, explica.

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