Famílias com renda menor não perceberam a queda na inflação registradas principalmente entre março e maio, uma vez que a maior pressão sobre o índice veio dos alimentos. Alimentos fazem parte da cesta básica da população de baixa renda; tomate foi um dos itens que mais subiu no ano
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Os índices de inflação têm mostrado uma desaceleração na alta dos preços – mas a população de baixa renda não tem sentido esse efeito no bolso.
O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial no país, acumula alta de apenas 0,10% no ano até junho, após ter registrado deflações em abril e maio, em plena pandemia do coronavírus.
No entanto, o que mais pesa no bolso da população de baixa renda, que são os alimentos, vem subindo bem mais que o índice geral de inflação. Entre os fatores que explicam esse “descolamento” destacados por economistas estão os seguintes:
com a queda na renda, o consumo diminuiu e o foco passou a ser na compra de alimentos básicos que compõem a cesta básica – com o aumento da demanda, os preços subiram;
estocagem de alimentos em decorrência do isolamento social, sobretudo por parte das famílias de classe média e média alta, que impulsionou os preços, prejudicando as famílias com renda mais baixa;
desvalorização do real frente ao dólar, que acabou afetando os preços de alimentos como milho, soja e trigo e encareceram os preços das carnes, pães, biscoitos e macarrão, por exemplo.
efeitos sazonais, principalmente ligados ao clima, que acabaram afetando safras, plantações e pastagens.
De acordo com André Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor do FGV IBRE, as famílias de baixa renda não tiveram exatamente a percepção de queda na inflação registradas principalmente entre março e maio porque o que mais pressionou o índice foram os alimentos.
Segundo o IPCA, a alimentação variou 4,09% de janeiro a junho, enquanto o índice geral ficou em 0,10%.
Braz elenca vários fatores para essa alta. No começo do isolamento social, o medo do desabastecimento fez as famílias estocarem alimentos, aumentando a demanda pelos produtos, o que contribuiu para o aumento mais rápido nos preços.
Com o fechamento de restaurantes e lanchonetes, as refeições passaram a ser feitas em casa, o que fez o consumidor reforçar a despensa e resultou no aumento da demanda.
Outro ponto relevante tem a ver com a valorização do dólar, que influencia bastante os preços de alimentos como milho, soja e trigo. “O trigo encareceu pão francês, biscoito, macarrão e várias outras coisas que são de uso cotidiano. O milho e a soja não vão direto à mesa do consumidor, mas servem de ração animal para as proteínas que a gente consome. As aves comem milho, então se o milho fica mais caro, o frango encarece também. Suínos e bovinos se alimentam de rações à base de soja e milho, então a gente também vê o encarecimento dessas carnes também por conta desses custos com ração”, explica Braz.
Problemas não relacionados com a pandemia também influenciaram no aumento dos alimentos, como maior demanda por ovos na Quaresma e problemas com a safra do feijão.
“Os alimentos da cesta básica como arroz, feijão, ovos, carne, macarrão, leite, café, que são o grosso da nossa cesta básica, pressionaram mais o custo de vida, tiveram uma demanda mais forte. Isso ajuda a aumentar o preço, mas também houve a questão cambial, a preocupação do consumidor com desabastecimento e certa disposição para estocar, o que não ajudou muito a conter o avanço dos preços”, diz Braz. “Então o grande problema da inflação nos últimos meses ficou na alimentação e, por isso, ela afetou mais o público de baixa renda que gasta mais com esse tipo de despesa”.
Em março, quando o isolamento social começou, o IPCA subiu 0,07%. Em abril caiu 0,31% e em maio a queda foi de 0,38%, voltando a subir 0,26% em junho(veja gráfico abaixo).
“Nós tivemos os últimos meses com taxas baixas e duas negativas, mas as famílias não perceberam isso, principalmente as de baixa renda. Isso ocorre porque, quanto menos se ganha, mais o orçamento fica concentrado na compra de alimentos, na subsistência básica da família”, comenta o economista.
IPCA junho/2020
Economia G1
“Tem ainda aquela sensação de que a inflação está subindo porque a sua renda diminuiu e você não consegue comprar o que quer. Isso contribui também para que as famílias de baixa renda sintam um aperto maior no bolso”, diz.
Braz explica que a alimentação tem peso de 20% no IPCA. Os outros 80% correspondem a produtos e serviços que ficaram com os preços relativamente estáveis no período porque não estavam disponíveis devido ao isolamento, como atividades relacionadas ao lazer e turismo e serviços como oficina mecânica e salão de cabeleireiro.
O economista da FGV aponta que a gasolina caiu muito de preço entre março e início de maio, contribuindo para a queda da inflação. No ano, até junho, o recuo é de 11,88%. Mas, segundo ele, a gasolina não é um bem de consumo da baixa renda, que gasta com transporte público.
“A cesta de consumo do IPCA é muito diversificada e ela dá mais peso a outros produtos e serviços. A alimentação é uma variável importante dentro do IPCA, mas nessa queda de braços ela perdeu porque os outros 80% tinham mais relevância e pressionaram pouco a inflação. Já a alimentação recebeu todo o impacto pela mudança de hábito de consumo. E os outros produtos e serviços ninguém procurava muito porque não eram prioridade para o momento”, afirma.
Além disso, produtos e serviços com preços controlados pelo poder público como transporte público e planos de saúde foram adiados em função da pandemia, o que contribuiu também para a queda da inflação.
“Portanto, a inflação dos mais humildes ficou muito concentrada em alimentos, e quanto mais a gente gasta com isso, mais a gente percebe que a nossa inflação está ali e é exatamente o que aconteceu com a baixa renda”, diz Braz.
De janeiro a junho, no ranking dos 20 itens com maior variação de preço, todos são do grupo de alimentação. A cebola lidera, com alta de quase 95%. Apesar de não estar entre 20 itens com maior alta, o arroz avançou 13,19%, o leite longa vida subiu 13,03%, o ovo, 11,5%, e o óleo de soja, 8,67%.
Veja os itens com maior alta no ano até junho:
Cebola: 94,72%
Manga: 67,12%
Batata-inglesa: 66,47%
Cenoura: 52,73%
Abobrinha: 46,28%
Morango: 42,71%
Peixe-tainha: 40,81%
Alho: 38,5%
Feijão-mulatinho: 33,45%
Batata-doce: 28,56%
Feijão-macáçar (fradinho): 28,1%
Feijão-preto: 27,92%
Feijão-carioca (rajado): 26,62%
Coentro: 25,66%
Açaí (emulsão): 24,68%
Pepino: 22,58%
Cheiro-verde: 19,86%
Tomate: 19,53%
Peixe-filhote: 19,25%
Pimentão: 16,42%
Inflação dos alimentos está afetando os brasileiros com menor renda durante a pandemia
Índice específico para baixa renda
A Fundação Getulio Vargas (FGV) tem um índice que mede a inflação de baixa renda, o chamado IPC-C1, que abrange famílias com renda até 2,5 salários mínimos mensais. O índice tem uma cesta de consumo restrita: quanto menor a renda, menos produtos e serviços as famílias tendem a consumir e mais elas gastam com alimentos. Por isso, esse índice subiu mais em comparação com o indicador que mede a inflação para o restante da população.
A inflação geral medida pela FGV para as famílias de baixa renda no acumulado dos últimos 12 meses está em 2,66%. Já a das famílias de renda mais alta ficou em 2,22%.
Já os alimentos da baixa renda subiram em média 7,5% nos últimos 12 meses, enquanto para o restante da população subiram 6,5%.
“Isso deve ser mantido ao longo do ano porque não existe expectativa de que os preços dos alimentos devolvam toda essa gordura acumulada nesse período de pandemia. A gente depende de safras melhores daqui para frente, de uma valorização do real frente ao dólar que é incerta, é um período de maior incerteza tanto no Brasil como no mundo, então alimentos eles devem ser o desafio da inflação para 2020 e ele desafio tende a ser maior para as famílias de baixa renda”, avalia Braz.
Monopólio de preços e empobrecimento da dieta
O professor dos cursos de Administração de Empresas da UNG, Carlos Darienzo, ressalta que a queda na renda e aumento do desemprego durante a pandemia influenciaram no aumento dos preços para a baixa renda.
“Essas famílias viram suas rendas cessar por completo ou diminuir, e quando a renda cai, elas consomem menos. Com a pandemia, o foco no consumo ficou nos alimentos básicos que compõem a cesta básica. Se eu só posso comprar arroz, feijão e farinha, a renda que eu tenho vai ser toda direcionada para isso. Assim, a demanda por esses produtos aumenta e em consequência o preço aumenta também”, explica.
Segundo o economista, a saída das famílias tem sido comprar produtos de marcas mais baratas, que também pertencem às mesmas empresas que atendem aos mais diferentes níveis de renda. “Então não há liberdade de preço ou uma concorrência entre empresas de produtos e os preços não refletem essa dificuldade em fazer essa troca”, diz.
Carlos Darienzo aponta ainda que uma das consequências da alta dos preços afetando o poder de compra é o empobrecimento da dieta. “Num momento de crise, você começa a estocar arroz, feijão, farinha, óleo, ou seja, alimentação básica, e certamente teremos consequências depois na área de saúde pois se trata de um empobrecimento da dieta”, afirma.
Projeções
Braz aponta que o desemprego e queda na renda freiam o consumo, e isso pressiona menos a inflação. A expectativa dele é que o IPCA feche neste ano abaixo de 2%, entre 1,5% e 1,6%.
A meta central do governo para a inflação em 2020 é de 4%, e o intervalo de tolerância varia de 2,5% a 5,5%. Para alcançá-la, o Banco Central eleva ou corta a taxa básica de juros da economia (Selic) – atualmente em 2,25%, seu menor patamar da história.
“Inflação boa é inflação na meta, a meta para 2020 é 4%, que sustentaria um nível de crescimento satisfatório da nossa economia, mas o desafio deste ano foi a pandemia e os efeitos que ela provocou, então não há como fugir desse cenário”, avalia.
O economista considera que alimentação passará a subir menos, mas, para ele, ter uma inflação menor não ajuda muito, porque o principal desafio é a falta da renda.
“A família até dribla a inflação quando tem algum recurso. Mesmo que a inflação de alimentos fosse zero, seria um desafio porque muitas famílias tiveram redução de renda forte, então isso aumenta a sensação de que a inflação está maior do que de fato a gente consegue medir. A tendência é a situação de forma geral melhorar gradualmente com o retorno das atividades, mas a melhora entre as famílias de baixa renda está longe de acontecer”, estima.
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