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'Falta de privacidade mata mais que terrorismo': o surpreendente alerta de professora de Oxford

A filósofa Carissa Véliz explica nesta entrevista à BBC Mundo as consequências da falta de privacidade no seu dia a dia e na sociedade em geral. A filósofa Carissa Véliz acaba de publicar o livro ‘Privacidade é poder’
Divulgação via BBC
Eles sabem praticamente tudo sobre você.
Antes mesmo de você sair da cama ou desligar o alarme do seu celular, muitas organizações já sabem a que horas você vai acordar, onde dormiu e até com quem.
E quando você acordar e pegar o celular, eles ainda saberão muitos mais detalhes particulares sobre você: pela música que você toca, eles vão deduzir, por exemplo, seu humor.
Até mesmo ligar a máquina de lavar ou fazer café pode revelar informações pessoais.
Seus gostos, seus hobbies, seus hábitos, seus relacionamentos, seus medos, seus problemas médicos…
Praticamente tudo o que fazemos é espionado e controlado por empresas que, por sua vez, compartilham todas essas informações pessoais entre si e com vários governos.
Não se trata apenas de venderem os seus dados pessoais, mas do imenso poder de influenciar que isso lhes confere.
Esses assuntos são abordados em Privacy is Power (ou Privacidade é poder), o livro que acaba de ser publicado no Reino Unido pela filósofa mexicana-espanhola Carissa Véliz, professora do Instituto de Ética e Inteligência Artificial da Universidade de Oxford.
Nascida no México em uma família espanhola que teve que deixar a Espanha após a Guerra Civil e encontrar refúgio naquele país, Véliz se interessou por privacidade quando começou a investigar a história de seus parentes em arquivos da Espanha.
“Fiquei pensando se eu tinha o direito de saber o que meus avós não me contaram sobre a Guerra Civil Espanhola”, explica Véliz.
Hoje ela é uma especialista em privacidade e no imenso poder que nossos dados pessoais conferem a empresas e governos.
O livro ‘Privacidade é poder’ foi lançado em setembro no Reino Unido
Divulgação via BBC
BBC News Mundo – Por que a privacidade é importante?
Carissa Véliz – A privacidade é importante porque a falta dela dá aos outros imenso poder sobre nós. Quando outras pessoas sabem muito sobre nós, elas podem interferir em nossas vidas.
A privacidade nos protege de abusos de poder. Por exemplo, ele nos protege contra a discriminação. Se seu chefe não souber a religião que você segue, ele não poderá discriminá-lo.
A privacidade é como a venda que cobre os olhos da Justiça para que o sistema nos trate com igualdade e imparcialidade.
Neste momento, não somos tratados como iguais: não vemos o mesmo conteúdo online, não nos são oferecidas as mesmas oportunidades, muitas vezes não pagamos o mesmo preço pelos mesmos produtos — graças a algoritmos de sites da internet que usam nossos dados para nos oferecerem informações e produtos diferentes.
Se somos tratados de acordo com nossos dados (se somos mulheres ou homens, magros ou gordos, ricos ou pobres) não somos tratados como cidadãos iguais. Privacidade é poder.
Se continuarmos dando nossos dados a empresas, não devemos nos surpreender depois que os ricos serão quem escreve as regras de nossa sociedade. Se dermos aos governos nossos dados, não devemos depois nos surpreender que esses mesmos governos passem a nos controlar.
Para que a democracia seja forte, os cidadãos devem estar no controle dos dados. É por isso que a privacidade é uma preocupação política — e não apenas individual.
BBC News Mundo – Quais dos nossos dados são coletados por meio de dispositivos eletrônicos? Você pode nos dar alguns exemplos?
Véliz – Tudo que você pode imaginar e um pouco mais. Quem são seus amigos e familiares, onde você mora, onde trabalha, com quem dorme, se está sendo infiel ao seu parceiro, sua orientação sexual, suas opiniões políticas, que carro você tem, quanto dinheiro você ganha.
Também quanto gasta, se tem dívidas, se foi vítima ou autor de um crime, o que come, quanto bebe, se fuma, o que compra, se tem alguma doença, o que o preocupa, a que horas vai dormir e a que horas acorda, como você dirige, o que você procura na internet, o que chama sua atenção, qual é o seu humor.
Seu carro, por exemplo, se for ‘inteligente’, fica atento à música que você gosta e o assento mede até seu peso.
BBC News Mundo – E que uso é feito desses dados e por quem?
Véliz – Todas essas informações são vendidas a quem oferecer o lance mais alto. Os ‘data brokers’ compilam dossiês sobre os usuários da internet e os vendem.
BBC News Mundo – Quem os compra?
Véliz – Empresas de marketing, seguradoras, bancos, empregadores em potencial e até governos e, em alguns casos, criminosos que desejam roubar sua identidade.
BBC News Mundo – Que dano isso pode causar — que alguns de nossos dados pessoais sejam conhecidos por outros?
Véliz – Os danos podem ser tanto individuais (alguém roubando seu número de cartão de crédito e comprando algo com ele, ou alguém roubando sua identidade e cometendo crimes em seu nome), quanto danos coletivos (hackeando nossa democracia, como a empresa Cambridge Analytica tentou, enviando propaganda personalizada, incentivando algumas pessoas a votarem e desencorajando outras, ou enviando notícias falsas para confundir a população e gerar desconfiança).
Em casos extremos, a falta de privacidade mata: de suicídios por humilhação pública (como aconteceu no ano passado na Espanha) a regimes autoritários que usam dados pessoais para perseguir certos grupos (a China usa dados biométricos e pessoais para perseguir os uigures).
Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os nazistas usaram registros públicos para procurar judeus.
Na França, onde o censo não coletou informações sobre religião por motivos de privacidade, eles encontraram e mataram apenas 25% da população judia.
Na Holanda, onde existiam registros muito detalhados de domicílio e religião, eles encontraram e assassinaram cerca de 75% da população judia. A diferença são centenas de milhares de pessoas.
Como essa informação não existia na França, os nazistas confiaram a tarefa de coletar dados sobre religião a René Carmille, Controlador Geral do Exército francês.
Carmille disse que usaria máquinas Hollerith, que funcionavam com cartões perfurados da IBM, para fazer um censo. O que os nazistas não sabiam é que Carmille era uma das pessoas mais importantes da Resistência Francesa.
Ele reprogramou as máquinas para que não perfurassem a coluna 11, onde os cidadãos indicavam sua religião. Ao não coletar essas informações, Carmille salvou centenas de milhares de vidas.
Vista dessa forma, a falta de privacidade (indiretamente) causou a morte de mais pessoas do que o terrorismo.
No meu livro, argumento que você deve pensar nos dados pessoais como se fossem uma substância tóxica, porque de certo modo é. Eles estão envenenando nossas vidas, como indivíduos e como sociedades.
Os dados pessoais devem ser regulamentados da mesma forma que regulamentamos outras substâncias tóxicas, como o amianto.
BBC News Mundo – As informações coletadas sobre nós podem ser usadas para discriminar algumas pessoas ou para outros fins perversos?
Véliz – Claro. Imagine que uma empresa deseja contratar alguém. Você tem dois candidatos que são igualmente competentes.
A empresa compra os dados de ambos os candidatos e percebe que um deles professa uma religião ou apoia um partido político contrário às crenças do chefe da empresa.
Ou você fica sabendo que um candidato tem um problema de saúde que pode ser sério no futuro, ou que tem filhos pequenos.
A empresa pode contratar o candidato que tem a religião certa, ou que apoia o partido político que eles apoiam, ou pode preferir o candidato mais saudável, ou o que não tenha família para distraí-lo.
Discriminação é ilegal, mas quem vai ficar sabendo? Você pode ter sido vítima de discriminação e nunca descobrir.
BBC News Mundo – Como sociedade, por que é importante mantermos nossa privacidade?
Véliz – Porque sem privacidade não há garantia de igualdade, nem justiça, nem liberdade, nem democracia. A vigilância em massa é incompatível com o Estado de Direito.
A arquitetura da vigilância é perfeita para cairmos em uma sociedade de controle ou com tendências autoritárias. A liberdade de pensamento não pode ser garantida quando tudo o que lemos está sendo observado.
A confidencialidade entre advogados e clientes, ou médicos e pacientes, não pode ser garantida quando tudo o que dizemos se transforma em dados que são coletados, analisados e vendidos.
A falta de privacidade ameaça nossa autonomia, nossa capacidade de governar a nós mesmos, como indivíduos e como cidadãos.
Como pode haver confiança entre os cidadãos, ou debates políticos saudáveis, se há atores estrangeiros querendo hackear nossa psicologia, usando dados sobre os nossos medos para incitar o conflito entre nós?
BBC News Mundo – Mark Zuckerberg, presidente e fundador do Facebook, declarou em 2010 que “a era da privacidade acabou”. É isso mesmo? Precisamos nos resignar ao fato de que empresas e governos sabem cada vez mais sobre nossa vida pessoal?
Véliz – Zuckerberg teve e ainda tem interesse financeiro no fato de as pessoas acreditarem que a privacidade é coisa do passado. Mas a privacidade é mais relevante do que nunca.
Tente pedir a um estranho que lhe forneça a senha de seu e-mail: ninguém vai dar isso a você. A privacidade não morreu. Pelo contrário. Este é apenas o começo da luta por nossa privacidade online.
O próprio Zuckerberg, percebendo que as pessoas estão cada vez mais preocupadas com sua privacidade, mudou o tom de sua publicidade e afirmou no ano passado que o futuro é privado.
Não, não devemos nos resignar. Devemos lutar por nossa privacidade, porque há muita coisa em jogo. Nossa forma de vida está em jogo. Nosso futuro e o futuro de nossos filhos.
Mesmo nas sociedades mais capitalistas, concordamos que certas coisas devem estar fora do mercado. Por exemplo, se colocarmos os votos à venda, corroemos a democracia. Se vendermos o resultado das partidas de futebol, arruinamos o esporte.
Temos que colocar nossos dados pessoais nessa lista de coisas que não deveriam estar à venda. Permitir que os urubus de dados lucrem aprendendo sobre nossas vulnerabilidades é escandaloso.
BBC News Mundo – Como você pode combater a perda de privacidade individualmente? Você pode nos dar alguns conselhos práticos?
Véliz – Pare de usar o Google; use DuckDuckGo. Pare de usar o WhatsApp; use Signal. Não forneça seus dados pessoais para quem não precisa deles.
Se uma empresa pedir seu e-mail e não precisar dele, dê um e-mail falso, assim como você daria um telefone falso para alguém inconveniente que não aceita “não” como resposta.
Não viole a privacidade de terceiros: não poste fotos ou mensagens de alguém sem seu consentimento, e não compartilhe nenhuma imagem ou vídeo que viole a privacidade de alguém.
Não seja um acessório para vigilância em massa. Evite comprar objetos que se conectam à internet se não for necessário.
Eletrodomésticos como máquinas de lavar e chaleiras funcionam melhor se não estiverem conectados à Internet e não puderem ser hackeados.
Informe-se mais sobre o assunto privacidade. Leia sobre isso, e comente. Exija que as empresas e seus representantes políticos protejam a sua privacidade.
BBC News Mundo – Ter privacidade é um direito? E se for, quem deve garantir e proteger esse direito?
Véliz – Sim, a privacidade é um direito humano, é um direito tanto legal como moral.
É dever dos governos e dos cidadãos proteger esse direito, assim como o seu direito à vida é protegido tanto pelo Estado quanto pelas pessoas ao seu redor.
BBC News Mundo – E por que o direito à privacidade não é protegido?
Véliz – A privacidade não está sendo suficientemente protegida por razões financeiras, porque a venda de dados é lucrativa. É por isso que eu argumento em meu livro, “Privacidade é poder”, que nós temos que acabar com a economia de dados.
Enquanto os dados forem lucrativos, haverá abusos. Algumas pessoas podem pensar que é radical fazer uma chamada para encerrar a economia de dados.
Mas o radical é ter um modelo de negócios que dependa da violação massiva e sistemática de nossos direitos.
BBC News Mundo – Há quem diga que não se preocupa que empresas e governos tenham acesso aos seus dados privados e pessoais, que elas não têm nada a esconder. O que diria a essas pessoas?
Véliz – Diria que você tem muito a esconder e a temer, a menos que seja um exibicionista com desejos masoquistas de sofrer roubo de identidade, discriminação, desemprego, humilhação pública e totalitarismo, entre outros riscos possíveis.
Outra coisa é que você não sabe o que tem a esconder. Você pode ter uma doença que ainda não se manifestou, mas que, quando os abutres de dados descobrirem (e eles podem descobrir antes de você), eles usarão isso contra você.
Um problema com a privacidade é que muitas vezes não percebemos como ela é importante até que a perdemos e sofremos as consequências. E então é tarde demais.
BBC News Mundo – Que implicações éticas existem por trás da perda de privacidade que sofremos?
Véliz – Muitas. Talvez a mais importante seja que Estados e empresas de comércio de dados estão apoiando um sistema econômico profundamente imoral, porque ele depende da violação sistemática de nosso direito à privacidade.
BBC News Mundo – Alguém pode fazer uso político de nossos dados pessoais? A falta de privacidade pode ser uma ameaça à democracia?
Véliz – Sem dúvida. Já aconteceu com Cambridge Analytica, que interferiu no referendo do Brexit e nas eleições americanas em que Trump ganhou.
A empresa usou dados pessoais para tentar convencer os cidadãos que votariam em Hillary Clinton de que votar não valia a pena, por exemplo. O conteúdo personalizado é tóxico e deve ser banido.
Ninguém tem acesso direto à realidade: sabemos (ou pensamos saber) o que está acontecendo no mundo por meio de nossas telas. Se a informação que uma pessoa recebe é diametralmente diferente daquela de seu vizinho, não há como se entender e ter uma discussão racional.
Cada um vai pensar que o outro é louco. Mas não somos loucos, estamos simplesmente sendo expostos a imagens do mundo tão diferentes que não são compatíveis.
Quando o conteúdo que vemos é individual, a esfera pública se fragmenta em realidades individuais, guetos informativos.
BBC News Mundo – Ainda estamos a tempo de recuperar nossa privacidade?
Véliz – Estamos na hora certa. Podemos proibir a economia de dados, forçar os abutres de dados a apagar nossas informações confidenciais, impor deveres fiduciários a qualquer pessoa que manipule nossos dados (de tal forma que os nossos dados só possam ser usados por nós e nunca contra nós, exatamente como acontece com os médicos, que só podem usar o que sabem para nos beneficiar e nunca para nos prejudicar), melhorar nossos padrões de segurança cibernética e muito mais.
Estamos passando por um processo de civilização semelhante ao que passamos no contexto pré-digital. Conseguimos transformar o Velho Oeste em um lugar habitável.
Graças à regulamentação, podemos confiar que os alimentos vendidos no supermercado são (relativamente) comestíveis, que os carros que dirigimos são (relativamente) seguros e que a água que bebemos é suficientemente limpa.
No futuro, teremos imposto as medidas adequadas para confiar que podemos usar a tecnologia sem que ela nos use. Algo importante a ter em mente é que a tecnologia pode funcionar perfeitamente bem sem a necessidade se negociar com nossos dados.
A venda de dados é apenas um modelo de negócios. Podemos financiar tecnologia de outras maneiras.
BBC News Mundo – Por que você se interessou pelo tópico de privacidade?
Véliz – Meu interesse pela privacidade começou como um assunto pessoal. Eu estava pesquisando a história da minha família nos arquivos da guerra civil na Espanha.
Descobrir certas coisas que não sabia sobre meus avós me fez pensar se eu tinha o direito de saber o que eles não me contaram e se tinha o direito de escrever sobre isso.
Filósofa, busquei respostas em minha disciplina, mas elas não me satisfizeram.
Naquele mesmo verão, quando visitei os arquivos com minha mãe, (Edward) Snowden revelou que o mundo inteiro estava sendo monitorado eletronicamente por agências de inteligência. Isso me chocou. Então comecei a investigar a privacidade com mais seriedade.
Acabei escrevendo minha tese de doutorado na Universidade de Oxford sobre ética e política de privacidade. Quanto mais eu leio sobre isso, mais o estado de nossa privacidade me preocupa.
Quanto mais eu leio história, mais percebo que a economia de dados é uma loucura absoluta, que é extremamente perigoso ter tantos dados populacionais mal protegidos.
Vender para quem quiser comprar é colocar a população em risco constante. Os dados pessoais frequentemente acabam sendo abusados, mais cedo ou mais tarde.
Eles são uma bomba-relógio.
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