Para economista, crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Ele também avalia que o ritmo de recuperação será modesto diante do quadro de incertezas com a evolução da doença. O economista Eduardo Giannetti afirma que a crise provocada pelo coronavírus escancarou o cenário de desigualdade do Brasil. Responsável por absorver 39% da renda nacional, o Estado brasileiro, segundo ele, tem atuado na direção de concentrar a renda e terá de ser repensado depois de superada a pandemia.
“O Estado brasileiro concentra a renda. Em vez de ele atuar na direção de reduzir as desigualdades, de criar oportunidades, de dar condições de dignidade humana para a grande maioria da população, ele concentra e piora uma situação que por si só já é de obscena desigualdade”, diz.
Num cenário que combina um quadro sanitário grave, aprofundamento da crise econômica e incerteza política, Giannetti avalia que a recuperação da economia será claudicante. “É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar apreensivos por algum tempo com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado”, diz.
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Eduardo Giannetti
EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao G1.
Qual avaliação que o sr. faz do momento atual da economia?
Essa crise é totalmente diferente do que nós estamos acostumados a ver. Há duas diferenças. Primeiro, a crise vem de fora da economia. É um vírus, que conseguiu pular as espécies e entrar no ser-humano. A segunda característica diferenciadora é que não é uma recessão nem uma depressão. É um colapso. É uma parada súbita. Repentinamente a produção e o consumo se viram dramaticamente tolhidos pela necessidade de conter a propagação de um vírus letal.
E qual é o cenário que se desenha para a economia?
Eu trabalho com três cenários e eles têm probabilidade distintas. Tem o cenário de recuperação vigorosa. Ou seja, ultrapassada a fase crítica da pandemia, a economia rapidamente retoma o nível de atividade pré-crise. O segundo cenário é de uma recuperação claudicante. É um período lento de tentativa (de reabertura) e eventuais retrocessos. Os investidores e consumidores vão ficar por algum tempo apreensivos com relação ao futuro, portanto, vão trabalhar com o freio de mão puxado.
O terceiro cenário é de depressão. Se nós tivermos novas ondas sérias de contaminação, se as coisas pioram, podemos entrar num período longo de confinamento e falta de perspectiva, o que pode levar a economia para um período prolongado e muito abaixo do nível de normalidade.
Desses cenários, qual deve ser o mais provável para a economia?
Os dois cenários extremos, de recuperação vigorosa e a prolongada depressão, são menos prováveis. Eu aposto nesse cenário que está se desenhando, de uma recuperação claudicante.
Além da questão sanitária, o Brasil ainda tem um agravamento do quadro econômico e lida com a incerteza política. Como o país sai dessa crise?
O Brasil tem uma boa notícia na comparação com o mundo emergente: nós estamos com as contas externas muito equilibradas e robustas. Não temos obrigações em moedas estrangeiras que nos deixam vulneráveis. Nosso déficit em conta corrente é pequeno e vem sendo plena e confortavelmente financiado pelo investimento direto estrangeiro. Temos reservas cambiais e as nossas exportações estão se mostrando muito resilientes ao longo do coronavírus.
E o que fragiliza o Brasil?
São duas coisas. Primeiro, a obscena desigualdade que prevalece na sociedade brasileira. São dezenas de milhões de brasileiros que vivem numa situação de extrema vulnerabilidade. São trabalhadores informais que vivem numa situação de completa precariedade, não tem uma situação regular de emprego. Vamos ter de pensar com muito mais seriedade, passada essa crise, como é que nós vamos, para começo de conversar, prevenir ou impedir que dezenas de milhões de brasileiros não tenham sequer uma situação regular de emprego. Isso não é normal, isso é uma aberração institucional brasileira.
Retrato do economista Eduardo Giannetti
Evelson de Freitas/Estadão Conteúdo/Arquivo
E a segunda fragilidade?
Está na política. O Brasil foi pego nessa tremenda emergência com uma presidência da República disfuncional, com um presidente que demite o ministro da Saúde em plena pandemia por discordar dele numa questão técnica. É alguém que acredita em pensamento mágico, alguém que quer resolver as questões na bravata e ainda se vê envolvido numa crise política de enormes proporções.
O que será necessário repensar do Estado brasileiro?
O Estado brasileiro arrecada anualmente 33% do PIB em impostos. A nossa carga tributária bruta está fora do padrão para um país de renda média. O Estado brasileiro também gasta mais do que arrecada. O nosso déficit nominal, antes da crise sanitária, estava em torno de 6% do PIB. Estamos falando de 39% da renda nacional intermediada pelo setor público brasileiro.
E é estarrecedor o que vem em seguida: quase a metade dos domicílios brasileiros não tem saneamento básico, não tem coleta de esgoto. Os nossos indicadores de educação fundamental, de saúde e de segurança estão muito abaixo do que deveriam estar pelo nível de renda. E, no entanto, nós temos um estado que drena anualmente 39% da renda nacional. A conclusão é incontornável: o Estado brasileiro concentra a renda. Em vez de ele atuar na direção de reduzir as desigualdades, de criar oportunidades, de dar condições de dignidade humana para a grande maioria da população, ele concentra e piora uma situação que por si só já é de obscena desigualdade.
E o que tem de ser feito para corrigir?
O sistema brasileiro tributa desproporcionalmente quem menos pode pagar porque está calcado em impostos indiretos, que incidem sobre o consumo e a produção. Nós temos que redesenhar o sistema tributário.
Temos de repensar o modelo de Estado no Brasil, que é altamente centralizado no governo central. O dinheiro via até Brasília para depois voltar para os entes federativos, que têm as atribuições de interesse dos cidadãos: educação, saúde, saneamento, segurança e transporte. O cidadão não tem a menor ideia de quanto paga de impostos da sua renda, não sabe para onde vai o tributo. Não existe cidadania tributária no Brasil. Não estou questionando o tamanho da carga tributária. Temos de colocar o Estado a serviço da grande maioria desassistida da população. É o grande desafio que temos de enfrentar necessariamente depois dessa crise. Essa crise escancarou essa realidade.
Essa vai ser uma cobrança da sociedade?
Essa questão está amadurecendo na consciência da sociedade brasileira. Não posso garantir, mas eu acho que a sociedade vai ter de acordar para essa desfuncionalidade do Estado. Nesse ponto, a agenda da equipe econômica liderada pelo Paulo Guedes é correta. Menos Brasília, mais Brasil. O cidadão não mora no governo federal, mora no município. Ele tem de pagar impostos no município e receber recursos de volta, cobrando do município.
A agenda de reformas saiu do foco por causa da pandemia. Mas qual é o futuro dela?
O Brasil estava saindo da emergência fiscal no momento em que foi atingido pelo coronavírus. Era o momento de começar a visualizar uma ancoragem fiscal e estava delineado um caminho em que a dívida pública como proporção do PIB se estabilizaria e passaria a declinar lentamente depois de algum tempo. Agora, o que está contratado, em função da crise, é um crescimento da dívida pública. Vamos sair dessa crise com alguma coisa ao redor de 90%, 100% do PIB de dívida pública.
É preocupante esse patamar de dívida pública?
Não é uma situação inadministrável. O que tem de ficar claro é que mudou o patamar da dívida pública, mas ela não pode continuar crescendo no ritmo em que ela cresceu durante a crise. Vamos ter de garantir que ela se estabilize e, a partir daí, vamos repensar para saber como diminuir o tamanho da dívida em relação ao PIB. É uma questão de fluxo, não de estoque. E vai exigir atenção para que o fluxo não continue numa trajetória explosiva para o setor público brasileiro não quebrar.
Do que vai depender essa estabilização da dívida?
Vai depender de uma série de esforços, da eficiência do setor público, manter juros baixos, uma reforma administrativa. Eu acredito que é importante essa contrapartida que o governo federal está exigindo dos estados de não reajustar salário de servidores por um bom tempo daqui para frente.
O salário mínimo vai ser uma questão de primeiríssima ordem. Porque, de cada três benefícios sociais, dois estão atrelados ao salário mínimo. Nós vamos precisar um pacto de que, durante algum tempo, a correção do salário mínimo será apenas o seu valor real. E mais um programa de concessões e privatizações que podem gerar, pela venda dos ativos, recursos para se abater uma parte dessa dívida contraída durante uma situação emergencial.
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