O PL 2.633, que ainda será analisado pelo Senado, permite que médias propriedades consigam a posse de terra, sem vistoria presencial, o que já é autorizado para pequenas. Para ambientalistas, a proposta estimula a grilagem. Quem defende, entende que a mudança reduzirá conflitos no campo. O Projeto de Lei 2.633, aprovado na Câmara dos Deputados na última terça-feira (3), gera receios em especialistas em meio ambiente ao alterar as regras da concessão de terras ocupadas em áreas que pertencem à União. O texto ainda será analisado pelo Senado.
Ambientalistas se preocupam com pelo menos 3 pontos:
a ampliação do tamanho das propriedades em que a posse pode ser comprovada por autodeclaração. O próprio ocupante informa a extensão e os limites da área, sem vistoria presencial de autoridades. Este aumento é visto como incentivo a novas ocupações irregulares, pois passaria a ideia de que a lei pode ser alterada a qualquer momento; daí o projeto ter sido apelidado de “PL da grilagem” pelos críticos.
apesar de prever vistorias em locais com infração ambiental registrada, o PL poderia permitir a regularização de áreas de desmatamento ilegal por dispensar essa vistoria se o Cadastro Ambiental Rural (CAR) estiver simplesmente ativo;
outra brecha poderia fazer com que terras de povos tradicionais sejam destinadas à titulação de terceiros, caso não haja um processo de demarcação aberto ou se órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Serviço Florestal não apresentarem um estudo reivindicando a área.
Já quem defende o projeto diz que:
ele é necessário para o fim dos conflitos de terra e para evitar que uma vasta área fique sem destinação.
o uso de tecnologias de sensoriamento remoto, previsto no PL, é fundamental para se reduzir a burocracia e dar celeridade, com segurança, ao processo de regularização fundiária.
Veja abaixo os detalhes do projeto e dos argumentos a favor e contra.
O que muda?
O projeto 2.633, de autoria do deputado Zé Silva (SD-MG), ligado à bancada ruralista, reestrutura a Lei nº 11.952/2009, que está em vigência, e reformula o texto da Medida Provisória 910/2019 – que perdeu a validade em maio de 2020.
Pela lei atual, só é permitido declarar a posse da terra ocupada sem vistoria presencial – a chamada autodeclaração – quando a área tem até 4 módulos fiscais de extensão, que são as pequenas propriedades.
O projeto aprovado na Câmara permite a autodeclaração para até 6 módulos, ampliando, portanto, o modelo para médias propriedades.
Módulo fiscal é uma unidade definida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) que varia de 5 a 110 hectares. Cada hectare corresponde a um pouco mais de um campo de futebol.
PL 2.633 aumenta a área permitida para autodeclaração na regularização de terras ocupadas da União.
Guilherme Luiz Pinheiro / Arte G1
Para alcançar o limite de 6 módulos, o texto vai permitir ainda a soma de áreas de parentes de primeiro grau e segundo graus.
Áreas maiores do que essa poderão pedir a posse da terra, mas deverão ser fiscalizadas pelo governo presencialmente.
Além disso, as novas regras passam a valer para todas as terras da União e do Incra em todo o país. Antes, só valiam para a Amazônia Legal.
Como se faz a autodeclaração?
O projeto prevê a criação de um sistema informatizado online, a ser desenvolvido pelo Ministério da Agricultura e pelo Ministério da Economia, para assegurar a transparência sobre o processo de regularização fundiária. Se aprovado, deve ser disponibilizado até dezembro de 2022.
Para fazer a declaração de posse de terra sem vistoria presencial, o ocupante deverá apresentar os seguintes comprovantes, segundo o projeto:
Planta e o memorial descritivo do terreno, assinados por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), com as coordenadas do imóvel rural que estão cadastradas no Sistema Geodésico Brasileiro, que faz monitoramento via satélite do país;
Cadastro Ambiental Rural (CAR) ativo;
Comprovação de prática de cultura efetiva, ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, por si ou por seus antecessores, anteriores a 22 de julho de 2008, que poderá ser feita por meio de sensoriamento remoto.
Além disso, será preciso enviar uma declaração informando que tanto o requerente quanto o seu cônjuge ou companheiro:
Não possuem outra propriedade rural em qualquer parte do território nacional e não foram beneficiários de programa de reforma agrária ou de regularização fundiária;
Exercem ocupação e exploração direta, mansa e pacífica, por si ou por seus antecessores, anteriormente a 22 de julho de 2008;
Praticam cultura efetiva na área;
Não exercem cargo ou emprego público no Ministério da Economia, Ministério da Agricultura, no Incra, na Secretaria do Patrimônio da União ou nos órgãos estaduais e distrital de terras;
Não mantêm em sua propriedade trabalhadores em condições análogas às de escravos;
Que o imóvel não se encontra sob embargo ambiental ou seja objeto de infração do órgão ambiental federal, estadual, distrital ou municipal.
Segundo o projeto de lei, o Incra só fará vistoria nos seguintes casos:
Se o imóvel for objeto de termo de embargo ou de infração ambiental, lavrado pelo órgão ambiental federal;
Se o imóvel tiver indícios de fracionamento fraudulento da unidade econômica de exploração;
Se o requerimento de registro for realizado por meio de procuração;
Se existir conflito declarado ou registrado na Câmara de Conciliação Agrária
Se houver ausência de indícios de ocupação ou de exploração, anterior a 22 de julho de 2008, verificada por meio de técnicas de sensoriamento remoto.
O que pensa quem discorda
Para ambientalistas e pesquisadores ouvidos pelo G1, há ao menos duas brechas no texto que poderiam permitir a titulação por terceiros de áreas desmatadas e de povos originários.
Se a área para a qual for pedida a regularização tiver algum registro de infração ambiental em órgão federal, o projeto prevê uma vistoria presencial. Porém, segundo especialistas, o texto dispensa esse cuidado se o ocupante tiver o Cadastro Ambiental Rural (CAR) com o status ativo.
Uma das ferramentas do Código Florestal, o CAR é um registro eletrônico que reúne informações ambientais das propriedades e posses rurais.
O cadastro, que é obrigatório, contém, entre outras coisas, dados do proprietário, documentos de comprovação de propriedade ou posse, e informações georreferenciadas do perímetro do imóvel, das áreas de interesse social e das áreas de utilidade pública.
O problema é que o cadastro do CAR também acontece por autodeclaração e, após a inscrição, o status fica automaticamente ativo, independente da análise do órgão ambiental regulador já ter sido realizada, explica Roberta Del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal.
“Então, você pode inscrever qualquer coisa no CAR. Colocar em cima de um imóvel público e desmatar ele integralmente ou já ter desmatado antes. O CAR fica ativo”, adverte a advogada.
“Estar ativo não significa que houve uma análise e que aquele imóvel está regular. Não significa nada na verdade, significa apenas que você deu o primeiro passo para a regularização”, conclui Roberta.
Para ela, o ideal seria a titulação ser concedida só depois da análise do CAR, e não simplesmente pelo fato de ele estar com status ativo. “A lei poderia prever até a análise desses imóveis ser priorizada na hora em que pede a titulação”, comenta.
A lei atual é mais rígida, prevendo que qualquer infração ao Código Florestal pode impedir a regularização de áreas por autodeclaração.
Brecha sobre terras de povos tradicionais
O PL prevê ainda que as terras ocupadas por comunidades quilombolas ou tradicionais que fazem uso coletivo da área serão regularizadas de acordo com normas específicas, “vedada a regularização fundiária em nome de terceiros”.
Porém, a advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana de Paula Batista diz que o inciso 5º, no artigo 4 do texto, abre precedente para que isso ocorra.
Atualmente, quando há um pedido por regularização de terra, órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Serviço Florestal e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) são consultados e têm até 60 dias para manifestarem interesse em uma determinada área e, assim, impedirem uma titulação.
Já o projeto prevê que, para barrar um pedido de regularização, é necessário que um processo administrativo de demarcação de terras esteja aberto ou que a entidade interessada apresente um estudo técnico em até 180 dias , reivindicando a destinação.
Caso isso não aconteça, a terra vai poder ser cedida para a regularização fundiária de terceiros que ocuparam a área.
“Muitas vezes, uma terra indígena não tem um processo de demarcação aberto, mas existe a reivindicação e os indígenas estão vivendo na área. Mas a Funai, por mora (demora) ou desídio (negligência) não abriu o processo. Pela lógica do projeto de lei, essa terra pode simplesmente ser destinada para regularização”, diz a advogada.
“É extremamente perigoso. É inconstitucional. A Constituição prevê que os direitos dos indígenas são originários, ou seja, é um direito anterior a qualquer outro direito”, afirma Juliana.
Além disso, para Juliana, este tipo de medida pode gerar mais conflitos, o contrário do que dizem os defensores do projeto.
“Porque, imagina, tem um invasor dentro dessas terras, a Funai ainda está nas fases iniciais dos estudos, não tem o estudo pronto para apresentar, o Incra passa a emitir título para o invasor”, avalia.
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PL não atinge fila dos processos
Para Richard Torsiano, consultor Internacional em Governança de Terras e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), a dispensa de vistoria prévia para os imóveis de até 6 módulos não atinge um dos principais problemas da regularização de terras na Amazônia: a fila de 105 mil processos que estão parados no Incra.
Ele explica que esses processos são referentes a terras com até 4 módulos fiscais, que já foram dispensadas da vistoria prévia pela legislação de 2009. Essas pequenas propriedades representam 96% dos imóveis com demanda por regularização na Amazônia, diz Torsiano.
“Se a dispensa resolvesse o problema, nós não teríamos essa quantidade enorme de passivos parados para regularizar”, afirma.
Para contornar a falta de pessoal, o projeto de lei prevê que o Incra poderá fazer contratos com outras instituições, como cartórios de registro de imóveis, bancos, Correios, Forças Armadas, entidades de assistência técnica rural e entes federados. Essas entidades serão autorizadas a fazerem a vistoria prévia quando obrigatória.
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Torsiano aponta que, na base de dados do Incra, também há médias e grandes propriedades aptas à regularização, mas em número bem menor: 6 mil.
Conforme a lei atual, elas requerem a vistoria presencial. Mas, em uma conta simples, o pesquisador calcula que esse número de processos dividido pelos 9 estados da Amazônia Legal geraria cerca de 4 vistorias por mês, durante um ano. “Não dá para entender, portanto, qual é a grande dificuldade de fazer esse trabalho”, questiona.
Torsiano também compara esse projeto de lei com o que está em discussão no Senado (510/2021). “O PL 2.633 é menos nefasto, menos problemático”, avalia.
“No meu ponto de vista (a proposta da Câmara) não muda muita coisa, não haveria necessidade de haver um projeto de lei para isso. Poderia ficar com a legislação que está em vigência e regulamentar as demais questões por meio de decreto”, comenta Torsiano.
“Eventualmente, a gente está mudando a lei quando, na verdade, o problema é de implementação, operacional, de aparelhamento dos órgãos responsáveis pela implementação da política. A gente não vai corrigir um problema de implementação mudando a lei”, completa Joana Chiavari, líder da Força-Tarefa de Regularização Fundiária da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.
Sensação de que a lei muda sempre
Joana entende que o PL acaba passando a mensagem de que a lei pode ser o tempo todo alterada e que ocupantes ilegais vão ter a expectativa de regularizar a terra um dia, por meio de novas legislações.
Segundo ela, parlamentares ruralistas pressionaram inclusive para que o texto mudasse, no sentido de aproximá-lo do projeto 510/2021, que tramita no Senado e estende a autodeclaração inclusive para grandes propriedades, além de propor um prazo maior para regularizar ocupações em terras públicas.
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O que pensa quem é a favor
O membro titular do Conselho Superior da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e advogado especializado em agronegócios Francisco de Godoy Bueno afirma que é um consenso a necessidade da regularização fundiária, para que, entre outros motivos, haja o fim de conflitos de terra.
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Essa ideia parte da premissa de que uma das razões para a existência de conflitos é a falta de destinação para determinadas áreas. Isso quer dizer que elas não são privadas, portanto, pertencem à União, contudo não receberam do Estado um propósito, que pode ser de preservação ou até mesmo para construir algo.
“São terras que não são unidades de conservação, áreas indígenas, de rodovias, prédios públicos, vinculados a um fim publico específico… Mas também não são como de propriedade privada”, explica.
Deste modo, essas áreas ficam vulneráveis a ocupação, inclusive, de um ou mais grupos. Para Bueno, quanto mais hectares forem destinados, menor vai ser a área de conflito fundiário.
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O conselheiro da SRB diz que existe uma vazio regulatório no país, onde há propriedades com assentamentos rurais que foram ocupados “legitimamente ou por contratos de gaveta”, se tratando de pessoas que chegaram na área 20 anos atrás e produzem lá, contudo não conseguem ser regularizadas.
A Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) também é favorável à ampliação da área que pode ser vistoriada de forma remota. E defende que esta deveria ser ampliada também para propriedades maiores, como prevê o PL 510/2021, proposto no Senado.
Segundo a entidade, isso resultaria em “maior celeridade no processo e redução da burocracia”.
Críticas ao uso do termo ‘grilagem’
Para Bueno, da SRB, pelos motivos listados acima não dá para relacionar o PL 2.633 com o termo grilagem.
“Grilagem é você forjar um documento para você virar titular. Na lei você não precisa forjar documento. (…) Você combate a fraude de terras, no sentido de que o Estado vai acabar com a discussão de quem tem título ou não tem, porque ele vai regularizar o título de quem está lá na propriedade”, argumenta o advogado.
Ele explica ainda que é importante transferir essas terras para os ocupantes, pois o Estado não possui capacidade de proteger estes territórios.
“No lugar de transferir para a sociedade o gerenciamento dessas áreas, confiando no Código Florestal, nas ferramentas de geoprocessamento, na fiscalização transparente do território, você acaba tendo o aumento da carga gerencial do Estado que já se mostrou totalmente falido, incapaz de gerir as áreas de conservação, o território indígena, os conflitos fundiários sob as áreas publicas destinadas e não destinadas, diz o advogado.
Sensoriamento remoto
Em uma entrevista ao G1 em maio, sobre o PL do Senado, o presidente da Comissão Nacional de Desenvolvimento da Região Norte da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Muni Lourenço, disse ainda que a entidade apoia a ampliação do uso de tecnologias remotas para a concessão de títulos.
Segundo ele, o sensoriamento remoto “é fundamental para se reduzir a burocracia e dar celeridade com segurança ao processo de regularização fundiária”.
Lourenço destacou que, para acelerar ainda mais os pedidos por posse de terra, a CNA é a favor de ampliar o limite das áreas passíveis de regularização até o limite constitucional de 2.500 hectares, como prevê o projeto de lei que está no Senado.
Ele ressaltou também que a vistoria presencial ou prévia será obrigatória nos casos em que o sensoriamento remoto verificar possível fracionamento irregular, conflitos fundiários, etc.
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