Cacique caiapó passou a evitar críticas ao presidente Jair Bolsonaro que, segundo a BBC News Brasil apurou, não ‘combinariam’ com o perfil do prêmio: ‘Deixa ele para lá, não vim falar disso’. O cacique Raoni tem uma longa história de luta pela preservação da floresta, e é considerado por outros povos uma liderança
Giovanni Bello/BBC News Brasil
O cacique caiapó Raoni Metuktire caminha vagarosamente dentro do Museu de História Natural de Oxford, no Reino Unido. Passa por esqueletos de dinossauros, se interessa pelos peixes empalhados expostos em uma vitrine e observa modelos de animais hoje extintos. Olha, curioso, as estantes com objetos pertencentes a indígenas de todo o mundo. Pergunta ao sobrinho: “Tem coisa dos caiapó aqui?”
“Acho que ele nunca conheceu a minha luta”
O que pensa o Cacique Raoni
Eles estão em Oxford para uma conferência no Reino Unido organizada principalmente para dar visibilidade internacional a Raoni diante de sua indicação para o Prêmio Nobel da Paz, segundo um dos idealizadores do evento, o professor de cinema e literatura da Universidade Estadual da Flórida (EUA), Marcos Colón.
Dentro de uma casa centenária com pé direito alto e janelas largas, Raoni, nascido em 1930, brinca sobre o frio que faz no Reino Unido (10ºC no dia da entrevista), e pede ajuda para tirar um grosso casaco vermelho. Uma assessora o auxilia, e ele começa a falar com a BBC News Brasil.
“Todos deveriam proteger a floresta do Brasil. O mundo fala, todos estão preocupados com a destruição da Amazônia. Não devemos ficar calados”, diz ele, em caiapó. Sua fala é traduzida por seu sobrinho, o chefe caiapó Megaron Txucarramãe.
“Eu conheço, conheço bem a natureza, os pajés de antigamente me ensinaram. Nós todos devemos nos unir, porque a Terra está sendo destruída. Há desmatamento, e hoje o mundo está em guerra”, afirma. “Hoje em dia há muitas mortes sob o olhar de quem nos fez. Eu também estou observando e ficando preocupado.”
‘Não vim falar disso’
Raoni tem uma longa história de luta pela preservação da floresta, e é respeitado e considerado por outros povos uma liderança.
Nos anos 1980, foi apresentado ao cantor britânico Sting e com ele rodou o mundo defendendo a necessidade de proteção à Amazônia e aos povos indígenas.
No Brasil, participou de mobilizações indígenas durante a elaboração da Constituição de 1988. O texto aprovado garante a proteção aos direitos dos indígenas no país e a demarcação de terras.
Sua representatividade, no entanto, é questionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Ele afirmou no ano passado que Raoni merece respeito, mas “não fala pelos indígenas”. “Não existe mais o monopólio do Raoni. Raoni fala outra língua. Não fala a nossa língua.”
“Acho que ele nunca conheceu a minha luta”, diz cacique Raoni sobre Bolsonaro
Agora, Raoni não quer mais falar sobre Bolsonaro. “Deixe ele para lá, para lá. Não vim falar disso, vim para falar sobre assuntos nossos do povo menbégôkre (caiapó)”, diz à BBC News Brasil. Questionado sobre sua representatividade, Raoni diz apenas que tem muita gente que o apoia.
Há poucas semanas, em meados de janeiro, Raoni convocou uma reunião de lideranças indígenas na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Mato Grosso, uma ideia que tinha há muitos anos e conseguiu concretizar com recursos de doadores levantados em outra viagem que fez ao Reino Unido, no ano passado.
Mais de 600 membros de 45 etnias compareceram, e todos prestaram reverência ao cacique — uma espécie de recado a Bolsonaro. No evento, indígenas também endossaram sua indicação ao Nobel da Paz e divulgaram um manifesto que denuncia o “genocídio, etnocídio e ecocídio” por parte do governo brasileiro.
Apesar de bastante respeitado, Raoni de fato não é considerado um líder por todos os povos. Um grupo de indígenas que praticam agricultura mecanizada em seus territórios, por exemplo, tem se aproximado de Bolsonaro. Raoni diz não gostar desses grupos. “Pensamos diferente, eu não gosto de violência, não gosto de conflito. Tem indígenas fazendo o errado”, diz à BBC News Brasil.
Quando fala na preservação da floresta, fala também sobre os jovens indígenas, com quem afirma se preocupar. “Comecei minha luta desde jovem e agora os jovens já conhecem a cultura dos brancos. Estão deixando nossa cultura indígena, e isso me preocupa.”
Evento em Oxford, no fim de janeiro, deu início a uma turnê mundial do cacique
Giovanni Bello/BBC News Brasil
Possibilidade do Nobel
O nome de Raoni começou a ser aventado para o Nobel da Paz no ano passado e, quando o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed ganhou o prêmio, houve decepção entre seus apoiadores.
Mas sua indicação só havia sido de fato submetida ao Comitê do Nobel em setembro, o que significa que valeria apenas para o prêmio de 2020. O ganhador é anunciado no final do ano — em 2019, o vencedor do prêmio recebeu 9 milhões de coroas suecas, o equivalente a R$ 3,8 milhões.
Indicações para o prêmio podem ser feitas por professores universitários, membros de assembleias nacionais ou líderes de Estado, entre outros.
No caso de Raoni, foi o Instituto Darcy Ribeiro quem encampou sua candidatura, pedindo, no entanto, que uma terceira pessoa o inscrevesse no prêmio, explica Toni Lotar, vice-presidente do instituto. Isso porque, de acordo com as regras do prêmio, quem preenche o formulário não pode divulgar a inscrição — e o instituto queria fazer isso.
“A ideia de fazer a indicação do Raoni já tem alguns anos. No ano passado, o Brasil teve essa mudança de governo, entrou esse presidente novo, que é um presidente como nenhum outro no passado se declarou explicitamente anti-indígena. Virou um personagem preocupante para os povos indígenas, o que fez com que o Raoni a partir de abril e maio do ano passado saísse de sua aldeia e retomasse suas turnês pelo mundo”, conta Lotar.
Em agosto, Raoni se reuniu com o presidente francês, Emmanuel Macron, que depois acabaria discutindo com Bolsonaro sobre a preservação da Amazônia. Os dois já haviam se encontrado na França em maio.
Lotar diz então ter se encontrado com Raoni em abril, no Acampamento Terra Livre, mobilização indígena, e comentado com ele sobre a possibilidade da candidatura ao Nobel e “ele falou ok”. “Ele não incentivou, eufórico, mas entendeu que poderia ser algo importante para a causa indígena e deu autorização.”
À BBC News Brasil, Raoni diz que muitas pessoas falaram com ele sobre o tema. “Vão me dar o prêmio pelo meu trabalho, por ajudar as pessoas”, diz.
Impulsionado por quem mantém contato com ele e o acompanha em viagens, como Lotar e outros acadêmicos, o cacique entrou em uma espécie de campanha.
A estratégia para ser agraciado com um Nobel passa por uma turnê mundial, que neste ano começou em Oxford, com um evento organizado com o objetivo primordial de chancelar a candidatura do indígena ao prêmio, no dia 30 de janeiro.
“Mais de 600 lideranças estiveram juntas ali (no encontro promovido por Raoni recentemente no Mato Grosso) respaldando o cacique. Nossa intenção ao trazê-lo a Oxford era que ele também fosse respaldado pela academia”, diz Colón, da Universidade Estadual da Flórida.
“Damos uma mensagem para o mundo, de que esse chefe brasileiro tem um respaldo não só de 45 etnias e 600 lideranças, mas também é respaldado pela academia, que dá a ele a legitimidade de ser o nosso Nobel da Paz.”
“Meu tio não está pedindo. Ele não está falando: ‘Dá para mim’. Ele não sabe o que é prêmio Nobel da Paz. Estão falando que vão fazer tudo para ele ganhar esse prêmio como reconhecimento do trabalho, da luta dele”, diz Megaron, sempre ao lado de Raoni.
“Se ele ganhar, será muito bom para nós indígenas. O mundo inteiro vai ver e ter mais respeito com a terra indígena. Eu acho que é isso que nós queremos.”
A tática para o Nobel também conta com menos falas combativas sobre Bolsonaro e mais falas sobre paz, além de um possível encontro com a jovem ativista sueca Greta Thunberg.
Segundo Lotar, também faz parte da estratégia a entrega do manifesto redigido no encontro no Mato Grosso ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, com Raoni indo pessoalmente fazê-lo.
Série mostra a importância da liderança do cacique Raoni nas tribos indígenas
Outras táticas
A ideia de um encontro entre Raoni e Greta tem sido repetida por quem defende seu nome para o prêmio — e os precedentes de um Nobel da Paz duplo alimentam a ideia. Em 2014 e 2018, por exemplo, o Nobel da Paz foi dado a mais de uma pessoa.
Nesta segunda-feira (03/02), duas integrantes do Parlamento da Suécia disseram ter submetido o nome de Greta para o Nobel da Paz. No ano passado, ela também havia sido indicada.
A imagem forte de um possível encontro é a de dois ativistas juntos pela preservação do meio ambiente de gerações em pontas opostas: uma jovem europeia de 17 anos e um indígena brasileiro com cerca de 90 anos e um grande histórico de luta ecológica. Ambos também já foram hostilizados por Bolsonaro.
“A gente gostaria muito que eles pudessem dialogar, se encontrar em algum momento, mas não sabemos ainda quando será isso. Existe a possibilidade e o desejo muito grande de que eles possam trocar alguma forma de diálogo”, diz Colón.
“Seria bastante simbólico que ganhasse o Nobel da Paz uma liderança da estirpe do Raoni junto com uma adolescente, europeia nórdica, e os dois defendendo a mesma causa”, diz Lotar.
Segundo ele, há negociações para promover o encontro em meados do ano. “Não deu para fazer isso agora. A menina tem uma agenda carregada.”
Mas Lotar diz que o encontro seria “muito mais para Raoni levar o agradecimento dos povos indígenas às falas da Greta do que propriamente uma ação de marketing para ganhar o Nobel da Paz, porque o Raoni não está em busca do Nobel da Paz”.
A assessoria de imprensa de Greta confirma que ela foi procurada por representantes de Raoni. Diz, porém, que em agosto, mês em que foi convidada para ir ao Brasil encontrar Raoni, ela voltará à escola, e descarta possibilidades de encontros em outras datas.
Raoni e Megaron Txucarramãe (dir.) estão em turnê pela Europa e líder pretende se encontrar com Greta Thunberg
Giovanni Bello/BBC News Brasil
A outra estratégia do líder indígena é, como aconteceu na entrevista, evitar falar sobre Bolsonaro.
Segundo o Instituto Raoni, a decisão é ligada a um aumento de hostilidade em relação a ele e outros indígenas depois que ele começou a responder a provocações do presidente.
A BBC News Brasil apurou que, além disso, acredita-se que falas combativas em relação a Bolsonaro não “combinariam” com o prêmio, e portanto o indígena teria de reduzi-las, embora já tenha falado bastante sobre o presidente no ano passado.
Lotar diz que não é o caso. Segundo ele, Raoni simplesmente parou de criticar o presidente porque viu que é perda de tempo, e que as lutas devem ser travadas no Legislativo e no Judiciário.
A presença em outros países e a denúncia pública dos problemas na Amazônia também é vista como positiva para a candidatura ao Nobel, já que o prêmio considera os feitos recentes dos nomeados.
Depois que teve seu nome enviado ao Comitê do Nobel, Raoni foi convidado para visitar neste ano os Estados Unidos e a Suíça. Antes disso, também havia sido convidado para ir ao Japão. Ainda não há confirmação dessas viagens.
No Reino Unido, Raoni tinha na agenda um encontro com o ministro do Meio Ambiente, Zac Goldsmith. Questionado sobre o que pediria ao governo britânico, afirmou que gostaria de apoio para a preservação dos povos indígenas e da Amazônia, sem explicar de que forma, e também para ir até o Congresso brasileiro entregar o manifesto redigido no Mato Grosso.
“O coração do Brasil é a floresta. Se derrubarem toda a floresta haverá mudanças climáticas, como as fortes chuvas e inundação. Espero que as autoridades daqui e outros se juntem para combater o desmatamento, para não haver mudanças de clima”, afirma. “Se não se unirem, vai aumentar a destruição da Amazônia e será ruim para todos nós.”
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