As redes sociais têm sido acusadas ao mesmo tempo de limitar a liberdade de expressão e de não fazer o suficiente para evitar a violência e o discurso de ódio Twitter tira conta de Trump do ar
REUTERS/Joshua Roberts
O bloqueio da conta do presidente americano, Donald Trump, no Twitter depois que seus apoiadores invadiram o Congresso dos EUA em 6 de janeiro foi comemorado por alguns e criticado por outros.
Entre os críticos da decisão estão principalmente os apoiadores do presidente dos EUA — mas os partidários de Trump não são os únicos a reclamar.
A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, se referiu à medida como “problemática” por limitar “o direito fundamental à liberdade de expressão” — segundo ela, nenhuma companhia privada deveria ter um poder tão grande e é a legislação do país que deveria regular o funcionamento das redes sociais.
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O ativista russo Alexei Navalny afirmou que o bloqueio foi “um ato de censura inaceitável”. A medida tem gerado preocupação entre alguns defensores da liberdade de expressão principalmente em países onde ela não é garantida.
“Obviamente o Twitter é uma empresa privada, mas vimos muitos exemplos na Rússia e na China de empresas privadas que se tornaram as melhores amigas do Estado e facilitadoras da censura”, explicou Navalny em sua postagem.
Para outros, porém, o mais preocupante é justamente que uma empresa privada conseguiu silenciar em parte o presidente dos EUA — muitas vezes considerado o homem mais poderoso do mundo — privando-o de seu megafone favorito. Trump utilizava muito o Twitter.
“O fato de um CEO poder desconectar o alto-falante do presidente dos Estados Unidos sem qualquer controle e equilíbrio é preocupante”, Thierry Breton, funcionário da União Europeia, em um artigo de opinião publicado no site Politico.
E até o ministro da Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, interveio no debate, alertando sobre os riscos das plataformas tecnológicas decidirem “quem deve e quem não deve ter voz”.
As referências a uma suposta censura e à liberdade de expressão também têm sido frequentes nas críticas dos partidários de Trump, que também foram objeto de medidas semelhantes em várias redes sociais.
O Twitter anunciou nesta segunda-feira o fechamento de “mais de 70 mil contas” vinculadas ao QAnon, grupo de teoristas da conspiração que já antes da eleição também havia sido objeto de bloqueio no aplicativo e também no Facebook.
A rede social de Mark Zuckerberg também suspendeu temporariamente a conta de Trump, assim como o Instagram. O Snapchat, Twitch e o YouTube fizeram o mesmo.
O Facebook também disse que está removendo todo o conteúdo que menciona a frase “stop the steal” (parem o roubo, em inglês), o slogan associado às alegações – sem provas – de Trump de que a eleição presidencial de novembro passado foi fraudada.
A Amazon parou de fornecer serviços de hospedagem para carregar o aplicativo da rede social Parler, plataforma parecida com o Twitter que se tornou popular entre militantes de extrema direita e seguidores do presidente.
O futuro da Parler também está ameaçado pela decisão do Google e da Apple de parar de oferecer o aplicativo em suas lojas virtuais, bem como pela recusa de muitos outros provedores online em fornecer-lhes espaço de hospedagem.
“A liberdade de expressão morreu e está sob o controle dos grandes senhores da esquerda”, disse Donald Trump Jr, filho de Trump, acusando os donos bilionários das redes de serem “de esquerda”.
Mas, como lembra David Díaz-Jogeix, diretor de programas para a liberdade de expressão da ONG Artigo 19, mesmo nas sociedades democráticas mais avançadas a liberdade de expressão está sujeita a certos limites que Trump (e vários de seus seguidores) parecem ter ultrapassado.
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Risco de violência
“Inicialmente, as mensagens foram eliminadas devido ao risco iminente e real de violência. Esse é o fator determinante”, disse Díaz-Jogeix, que acrescentou ser preciso levar em conta o imenso número de apoiadores de Trump e sua posição de influência.
“Nesse contexto, a eliminação desses tuítes faz sentido. E a suspensão da conta é grave, mas legítima, embora possa ser desproporcional. E digo ‘possa ser’ porque não sabemos se é uma suspensão permanente”, disse ele à BBC Mundo.
A potencial ameaça de violência também foi a justificativa usada pela Amazon Web Services (AWS) para explicar sua decisão de interromper o fornecimento de seus serviços à Parler.
“Está claro que há uma quantidade significativa de conteúdo na Parler que incentiva e incita a violência contra outras pessoas, e que a Parler não pode ou não deseja identificar e remover rapidamente esse conteúdo, o que é uma violação de nossos termos de serviço.” Amazon argumentou.
Parler, que anunciou um processo contra a Amazon, sustenta, por sua vez, que os verdadeiros motivos seriam “animosidade política” e “reduzir a concorrência no mercado de serviços de microblog em benefício do Twitter”.
Mas, como explica a pesquisadora de ética e tecnologia Stephanie Hare, esta não é a primeira vez que uma grande empresa de tecnologia norte-americana toma medidas semelhantes.
“A Cloudflare parou de fornecer entrega de conteúdo, proteção e serviços de suporte para o site da supremacia branca The Daily Stormer em 2017 e ao fórum 8Chan, cheio de conteúdo extremista, em 2019, depois que o 8Chan foi usado pelo autor de um massacre em El Paso, Texas”, diz Hare.
Díaz-Jogeix lembrou que o Twitter se reserva o direito de restringir o acesso à sua plataforma de acordo com os regulamentos da comunidade e os termos de serviço, que, no entanto, podem ser legalmente questionados.
“Na Europa, houve vários casos em que algumas redes removeram pessoas de suas plataformas e as pessoas os levaram a tribunais em seus países. Os juízes então forçaram as plataformas a devolverem seu espaço”, disse o especialista do Artigo 19.
“Mas há uma falta de jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e também nos Estados Unidos, sobre se há uma obrigação de dar espaço nessas plataformas para indivíduos”, diz.
Espaço público?
Para Santiago Pardo Rodríguez, professor da Universidade dos Andes, no caso do encerramento da conta de Trump há outros elementos a serem considerados que tornam o caso mais complexo.
Como o constitucionalista colombiano explicou em uma postagem no Twitter, em 2017 a Universidade de Columbia processou Trump por bloquear sete pessoas de sua conta no Twitter.
Um ano depois, um juiz concordou com o pedido da universidade e em 2019 outro Tribunal confirmou que Trump não poderia bloquear ninguém de sua conta no Twitter porque constituía um “espaço público”: um espaço onde a liberdade de expressão goza de ampla proteção contra as ações do governo que a violem.
“E a questão agora é: essas proteções constitucionais são estendidas às empresas privadas? Ou seja, uma empresa privada retirar alguém desse espaço é uma violação à liberdade de expressão da mesma forma que uma ação do governo seria? Acho que é um debate muito interessante e algo que precisa ser discutido”, diz Pardo à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
O jurista gostaria que essa discussão ocorresse na Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas, por enquanto, ele afirma que não considera necessariamente a atitude do Twitter inadequada.
“É aí que entra também o caso Brandenbrurg, um julgamento que levou à criação de uma nova regra. Essa norma diz que o governo pode limitar o conteúdo em condições muito específicas: quando houver uma iminência de que esse discurso violento possa produzir uma ação ilegal”, afirma.
Isso, no entanto, também levanta a questão de por que o Twitter não agiu antes.
E também a questão de se esse tipo de decisão pode ser deixada exclusivamente nas mãos das redes sociais, que têm sido acusadas ao mesmo tempo de limitar a liberdade de expressão e de não fazer o suficiente.
Mais rigorosas
Até agora uma das principais regras de plataformas como Facebook e Twitter era não interferir no conteúdo publicado por políticos, pois eles os consideravam muito importantes para o debate público.
Isso significava que usuários como o presidente dos EUA desfrutavam de mais liberdade do que outros usuários.
Mas desde o início da pandemia do coronavírus, as coisas começaram a mudar significativamente e as empresas começaram a tomar mais medidas contra líderes mundiais que espalharam desinformação.
Em março, o Facebook e o Twitter removeram postagens do presidente brasileiro Jair Bolsonaro e do presidente venezuelano Nicolás Maduro por espalhar inverdades sobre a covid-19.
Mas foi só em maio, no contexto dos protestos do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam, em inglês), que o Twitter tomou uma atitude contra uma mensagem postada por Trump.
O Twitter colocou um alerta sobre uma mensagem dizendo que ela glorificava a violência: “Quando começa o saque, começa o tiroteio”, escreveu Trump.
E ações desse tipo, que se multiplicaram durante a campanha eleitoral nos Estados Unidos, aumentaram ainda mais desde os eventos de 6 de janeiro, em todo o mundo.
Por exemplo, o Facebook anunciou na segunda-feira a remoção de contas vinculadas ao governo de Uganda que supostamente estavam sendo usadas para fraudar as próximas eleições.
E para o advogado especialista em privacidade Whitney Merrill, isso aponta para uma mudança na postura dos gigantes da tecnologia.
“As regras e diretrizes das redes sociais estão evoluindo com o tempo, o que é normal, mas não têm sido aplicadas de forma consistente em todo o mundo”, diz ele à BBC News Mundo.
Merill antecipa que a punição de Trump pode ser o início de um expurgo de comportamentos semelhantes em todo o mundo.
O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, já disse que gostaria de mudar a chamada Seção 230 – uma lei que em grande parte exonera as redes sociais de responsabilidade pelas publicações de seus usuários. A ideia é aumentar a moderação de conteúdo e reduzir a disseminação de notícias falsas.
Quem controla os controladores?
Melhorar a legislação também é a proposta da União Europeia.
A crítica de Angela Merkel à ação do Twitter contra Trump — feita por meio de seu porta-voz, Steffen Seibert 3 destacou que a liberdade de expressão só pode ser restringida “de acordo com a lei e dentro de uma estrutura definida pelos legisladores” e não “por decisão dos administradores das plataformas de mídia social”.
E, como lembra Díaz-Jogeix, embora as principais redes sociais venham de um contexto cultural de “absoluta liberdade de expressão”, regras internacionais “dão algumas diretrizes para limitar a liberdade de expressão.”
Essas regras determinam que discursos que contenham incentivo ao genocídio, incitação à violência ou discriminação contra grupos marginalizados não só podem como devem ser limitados.
“As redes sociais são guiadas por regras internas de funcionamento. O que criticamos é que essas normas não se baseiam, hoje, em padrões internacionais de direitos humanos”, diz Díaz-Jogeix.
Mas, para a ONG Artigo 19, também existe um risco em deixar a regulamentação dessas plataformas nas mãos dos governos.
“Não queremos que o Twitter ou o Facebook decidam quem pode desfrutar da liberdade de expressão. Mas também não achamos que seja uma boa ideia os governos fazerem isso, porque a história mostra que permitir que os governos regulem a liberdade de expressão é uma má ideia “, diz Díaz-Jogeix.
Como alternativa, a ONG está testando na Irlanda uma versão dos conselhos reguladores independentes de imprensa e publicidade que já existem em vários países europeus, adaptados à realidade das redes sociais.
E embora o debate esteja longe de terminar, Díaz-Jogeix acredita que o contexto atual oferece uma oportunidade valiosa.
“O que queremos é reorientar toda essa discussão global que está ocorrendo sobre isso, perguntando o que dizem os acordos internacionais de direitos humanos sobre liberdade de expressão, mas também sobre respeito à privacidade, por exemplo”, diz ele.
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