52% da população belga come batata todos os dias da semana, segundo pesquisa. País europeu tem museus dedicados à iguaria, geralmente servida em cones de papel. Museu na Bélgica é dedicado exclusivamente a informações sobre batata frita.
Thierry Roge/Reuters
Na Bélgica, a felicidade pode vir embalada em um cone de papel. É assim desde a época em que as terras deste pequeno reino pertenciam aos Países Baixos. Conta a lenda que foi no século XVII, após um inverno rigoroso na região de Namur, quando o rio Meuse congelou e não era possível pescar, que as batatas foram cortadas em forma de peixinhos e depois fritas, dando assim início à tradição.
Hoje, quem visita Bruxelas quer experimentar as famosas batatas fritas belgas que, ao lado das cervejas e chocolates, formam a trindade do patrimônio gastronômico do país. Nas barracas chamadas de fritkot as pessoas formam filas na hora do almoço.
GLOBO REPÓRTER: Conheça o segredo da batata frita perfeita
As fritkots são uma verdadeira instituição e existe 5 mil delas em toda a Bélgica. A mítica Maison Antoine, que funciona desde 1948 na Place Jourdan, em Bruxelas, é referência por servir as melhores fritas do mundo, segundo o jornal “The New York Times”.
“Nós usamos em média 300 quilos de batatas por dia, o que faz 8 toneladas por mês”, explica Dominique Bonnier, responsável pela equipe da Maison Antoine que funciona todos os dias até de madrugada, uma rara exceção do comércio local.
Museu belga ‘Frietmuseum’ oferece dicas de como preparar batatas fritas
Thierry Roge/Reuters
O comando da fritkot mais famosa de Bruxelas já está na terceira geração; agora com os netos do fundador. Entre os clientes; turistas, moradores da cidade, políticos e funcionários das instituições europeias, que estão a dois passos da Maison Antoine.
Originária dos Andes, os vestígios dos cultivos mais antigos da batata remontam aos tempos do Império Inca, a cerca de oito mil anos, no atual Peru. Foi um dos mais célebres botanistas do século XVI, Charles de l’Escluse, conhecido como Clusius, o primeiro a descrever a solanum tuberosum – nome científico da batata — trazida para a Europa pelos colonizadores espanhóis; e a espalhar a planta pelo continente europeu.
Atualmente a Bélgica é o 19º produtor mundial de batatas colhendo cerca de 4 milhões de toneladas por ano. As plantações de batatas cobrem 7% do território agrícola do país, o que representa 81 mil hectares. A qualidade do solo, clima e o savoir faire — saber fazer — fizeram a Bélgica conquistar a liderança da produção média de batata por hectare mais elevada do mundo.
‘De enlouquecer’
Conheça o segredo da batata frita perfeita, uma paixão belga
“Não conheço ninguém que deixe de enlouquecer ante um prato de batatinhas fritas crocantes”, costumava dizer Joël Robuchon, o chef francês com mais estrelas Michelin da história, considerado o cozinheiro do século.
O segredo para fazer uma batata sequinha, crocante por fora e macia por dentro, é usar batatas farinhentas que não soltam muita água. A variedade mais cultivada na Bélgica é a Bintje, também encontrada no Brasil.
A Bintje tem alta quantidade de amido, que permite uma boa resistência ao cozimento, sem absorver muito óleo. É preciso lavá-las em água fria e depois secá-las em um pano antes da fritura.
Nas melhores fritkots belgas a fritura é feita em gordura bovina e não em óleo vegetal, e em duas etapas. No primeiro banho, mais demorado, em temperatura mediana (130ºC). Depois a batata descansa, esfria um pouco, e na hora de servir é frita novamente (180ºC) até dourar.
Molho brasileiro
batata frita
TV Globo
Andaluz, maionese, provençal, béarnaise, ketchup, samurai, curry, maionese trufada e coquetel são alguns dos molhos que acompanham o ícone da gastronomia belga. Por aqui, quase ninguém sai de uma fritkot apenas com fritas; entre os molhos, a preferência nacional é pelo andaluz e a maionese, chamada de “maiô”.
O francês Claude Vallin, 65 anos, vem a Bruxelas a cada três meses visitar a filha, e nunca volta para Paris sem ter comido un grand cornet de frites.
“As fritas belgas são melhores do que as de Paris”, sentencia.
Os estudantes Romain, Nell e Judith, do último ano do ensino médio, marcam ponto na badalada fritkot Tram de Boitsfort. “Venho aqui umas quatro vezes por semana, e no verão, todos os dias”, afirma Romain que me explica que existe também um molho chamado “Brasil”, com sabor adocicado. Se os belgas fossem mais bem informados sobre a situação brasileira, talvez mudassem um pouco os ingredientes do molho.
Comedores de batatas
Um tapete de flores com 1800 m² é exibido em praça de Bruxelas, na Bélgica, em foto de 2018. País é considerado o maior consumidor de batatas fritas
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A verdade é que a imagem dos belgas como “les plus gros mangeurs de frites” — os maiores consumidores de fritas — está embasada em estatísticas bem reais. A batata é o tubérculo preferido dos belgas, que comem em média 30 quilos por ano; 52% da população come batata todos os dias da semana. Cada fritkot vende em média 100 cones de batatas fritas, o que significa um consumo diário de 130 mil quilos.
Em 2014, a Bélgica pediu a inclusão de suas famosas fritas como patrimônio cultural imaterial da Unesco. A cada dia 1º de agosto se comemora o dia internacional da batata frita no país com diversos eventos. Onze milhões de toneladas de fritas são consumidas no mundo por ano. Dois terços das batatas que são cortadas se transformam em fritas.
Recentemente, as batatas fritas se tornaram motivo de disputa comercial na Organização Mundial do Comércio. A União Europeia, cujo principal exportador de batatas fritas congeladas no mundo é a Bélgica, acusa a Colômbia de aplicar tarifas anti-dumping ilegais de até 8% nas importações do produto. O governo colombiano rebate argumentando que está protegendo o preço do batata local. Estima-se que o bloco europeu exporta US$ 28,4 milhões de fritas congeladas para a Colômbia por ano.
“Depois de dois meses de consultas com a Colômbia na OMC sem uma solução satisfatória, a Comissão Europeia está pronta para solicitar um painel de discussão sobre o caso”, afirmou à RFI Brasil, a porta-voz para Comércio do bloco europeu, Kinga Malinowska. Além da Bélgica, Alemanha e Holanda também foram afetadas pelas tarifas colombianas.
Museus
Museu belga é o primeiro desse tipo do mundo.
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Batata frita é um assunto tão sério na Bélgica que dois museus dedicados são consagrados ao assunto: o Home Frit’ Home, em Bruxelas e o Frietmuseum, em Bruges, ao norte do país. O mais interessante é o Frietmuseum, instalado em um prédio gótico flamengo do século XIV, que mostra a história da batata através dos séculos e continentes até a degustação de fritas.
Junto com a cerveja e o chocolate, a batata frita na Bélgica é um dos raros fatores que unem este jovem país, criado em 1830, e marcado pelas disputas linguísticas entre as comunidades francófona ao sul e a holandesa ao norte.
Há pouco tempo, um cone de fritas belgas foi enviado ao espaço graças a um balão-sonda de dez metros de diâmetro. O cone com as cores da bandeira da Bélgica voou sobre a Terra. Em 2002, o astronauta belga, Frank de Winne, ao retornar de uma missão espacial, afirmou estar tão feliz em voltar a seu país e que festejaria em um fritkot comendo fritas e bebendo cerveja. Faz lembrar da anedota sobre como enlouquecer um belga: tranque-o em um salão oval e diga que as fritas estão no canto.
Disputa de paternidade
Batata frita
Reprodução/Globo Rural
De algum modo, as fritas belgas possibilitam a compensação de um certo complexo de inferioridade em relação à França. Há séculos, os belgas e franceses disputam a paternidade da batata frita.
Alguns historiadores especializados em gastronomia garantem que foram os vendedores de guloseimas instalados na Pont-Neuf, em Paris, os primeiros a terem a ideia de mergulhar fatias de batatas em forma de palito na fritura, em 1840.
Até mesmo o poeta francês Charles Baudelaire, que morou em Bruxelas entre 1864-1866, declarou que comer batatas fritas com os dedos era “um gesto parisiense”. Logo Baudelaire, que foi o primeiro a criticar a aparição da cidade moderna habitada por uma burguesia decadente cuja moral não suportava.
As delícias do plat pays – uma alusão às terras sem montanhas da Bélgica – são reverenciadas pelo cantor belga e ícone da canção francesa, Jacques Brel. Na canção Madeleine, Brel canta: “Ce soir j’attends Madeleine. On prendra le tram trente-trois pour manger des frites chez Eugène. Madeleine elle aime tant ça. Madeleine c’est mon Noël, c’est mon Amérique à moi”.
Jacques Brel sonha com Madalena e diz que “esta noite eu espero Madalena. Nós vamos pegar o bonde 33 para comer fritas na casa de Eugênia. Madalena gosta tanto disso. Madalena é meu Natal, é a minha América”.
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