Ameaçadas de extinção, as duas espécies de onças típicas da Caatinga, a pintada e a parda, enfrentam cada vez mais desafios para sobreviver. Conflitos com o ser humano, caça ilegal e o aumento da produção de energia eólica têm influenciado na redução do número de animais no bioma do Nordeste brasileiro. Hoje, estima-se que existam apenas 30 onças-pintadas e 180 pardas na região do Boqueirão da Onça, no norte da Bahia, ponto com maior incidência desses grandes felinos na Caatinga nordestina.
Roland Brack/Divulgação
Encontrar onças na Caatinga é uma tarefa dificílima por alguns motivos: elas são animais raros vivendo em uma grande extensão de terra; elas não gostam muito de se aproximar de humanos; e, mais importante, a presença das duas espécies típicas da área, a parda e a pintada, tem diminuído nos últimos anos, o que as colocou em sério risco de extinção.
Hoje, estima-se que existam apenas 30 onças-pintadas e 180 pardas na região do Boqueirão da Onça, no norte da Bahia, ponto com maior incidência desses grandes felinos na Caatinga nordestina. Em 2008, data da estimativa anterior, havia 50 pintadas e 200 pardas na área — ou seja, houve uma queda de 40% no número de indivíduos da primeira, e de 10% da segunda.
Os dados são do Programa Amigos da Onça, projeto de estudo e conservação dos felinos da Caatinga, filiado ao Instituto Pró-Carnívoros.
Para especialistas e biólogos que atuam na região, além da caça ilegal, as onças enfrentam dois desafios: o conflito com o ser humano e o atual aumento de fazendas de geração de energia eólica — o recurso tem baixo impacto ambiental em comparação com as hidro e termoelétricas, mas eles não são nulos. O Nordeste corresponde a 86% de toda energia eólica produzida no Brasil.
Conservação x energia eólica
Há dois anos, uma área de 347 mil hectares do Boqueirão da Onça foi transformada em parque nacional por um decreto do então presidente Michel Temer (MDB). Isso significa que a fauna e a flora dentro dos limites do parque devem ser conservadas sem nenhum tipo de exploração.
A criação do parque foi vista como boa notícia para as espécies em extinção na Caatinga, como a própria onça, a arara-azul-de-lear e o tatu-bola.
Por outro lado, uma área maior, de 505 mil hectares, foi transformada em Área de Proteção Ambiental (APA) do Boqueirão. Diferente do que acontece com o parque, essa classificação permite exploração comercial desde que os planos de manejo sustentável sejam respeitados.
Inicialmente, a esperança dos ambientalistas era de que todo o Boqueirão da Onça virasse um parque nacional — ou seja, isso garantiria mais espaço para a preservação total do bioma e dos animais.
Mas a região é muito visada por empresas de geração de energia eólica, que têm cada vez mais instalado fazendas por ali. Portanto, a criação da APA foi benéfica para as companhias, que agora podem explorar o potencial energético da área.
“O Boqueirão é um filé mignon para essas empresas, pois ele tem um grande potencial de geração de energia. Há muitos pontos de morro, onde há uma incidência constante de ventos de boa velocidade”, explica Felipe Melo, pesquisador em Ecologia da Universidade Federal de Pernambuco, que estuda os impactos ambientais da energia eólica na Caatinga.
Para se instalar em uma APA, as companhias precisam de licenças ambientais e relatórios de impactos, embora estudos mais aprofundados sobre como as onças são afetadas pelas torres e linhas de transmissão ainda estejam em estágio inicial.
Porém, pesquisadores já têm notado que a proliferação das fazendas de energia e a maior presença de seres humanos no habitat estão diminuindo o espaço disponível para as onças caçarem suas presas naturais — obviamente, os animais não respeitam os limites burocráticos que separam a APA do parque nacional de conservação. A longo prazo, dizem biólogos, o encurtamento do território pode afetar o bem-estar e até a sobrevivência desses grandes felinos.
“As onças da Caatinga são muito sensíveis a qualquer alteração em seu habitat”, explica a bióloga Claudia B. Campos, ex-coordenadora e atual colaboradora do projeto Amigos da Onça. “A parda até tolera um pouco mais a presença humana. Já a pintada, não. Ela dificilmente vai até pontos onde há intervenção ou presença do homem.”
A bióloga Carolina Franco Esteves, também pesquisadora do Programa Amigos da Onça, conta que o projeto conseguiu monitorar as andanças de uma onça-parda, apelidada de Vitória, por meio de coleiras de rastreamento.
“Em 10 meses de monitoramento, percebemos que em nenhum momento ela se aproximou das torres de geração de energia”, afirmou à BBC News Brasil. “Quando queria chegar em algum ponto para caçar ou beber água, ela dava uma volta por fora das torres, mesmo que não houvesse ninguém por ali.”
Para Melo, esses impactos negativos “poderiam ser minimizados” se as empresas que atuam na Caatinga “dialogassem” mais com entidades e órgãos de conservação. “A energia eólica tem menos impacto ambiental, mas não significa que não exista. É preciso saber exatamente como áreas sensíveis são afetadas e tentar diminuir esses impactos, e não escondê-los”, diz.
Em nota, a Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica) afirmou que “tem monitorado constantemente” comunidades de animais silvestres nas região do Boqueirão.
“Isso ajudará, de forma bastante significativa a médio e longo prazo, a monitorar e compreender os reais fatores que podem contribuir com quaisquer alterações de riqueza das espécies”, diz a entidade.
A associação também afirma que as fazendas de geração de energia, além de evitar incêndios e gerar renda para produtores rurais, também “inibem a presença de caçadores e a supressão ilegal (de vegetação), ameaças concretas à preservação destes animais”.
Onças x rebanhos
Conflitos com o ser humano, caça ilegal e o aumento da produção de energia eólica têm influenciado na redução do número de animais no bioma do Nordeste brasileiro.
Roland Brack/Divulgação
Além das torres de energia, as onças da Caatinga enfrentam outro desafio, segundo pesquisadores: o conflito direto com o homem. A caça ilegal para a venda de pele, por exemplo, já matou muitos indivíduos, principalmente nos anos 1970, segundo a bióloga Claudia B. Campos.
Já a caça de outros animais, como veados e porcos do mato, continua afetando os felinos diretamente, pois eles ficam com menos recursos para se alimentar.
Outro tipo de conflito também tem atrapalhado a sobrevivência das onças na Caatinga: a competição com criadores de ovinos e caprinos de seis pequenas cidades que estão dentro do perímetro do Boqueirão.
“A Caatinga tem praticamente duas estações no ano: chuva e seca. Na época da seca, os criadores têm dificuldade para alimentar e prover água para o rebanho. Por isso, os animais ficam soltos para encontrar alimento”, explica Campos. “Então, há o encontro entre a onça e o rebanho. E, obviamente, o predador vai atacar os animais.”
Os pesquisadores notaram que a perda dos bichos fazia com que alguns criadores procurassem os felinos para abatê-los — muitas vezes com sucesso. A esperança deles era de que, sem onças por perto, o rebanho ficasse livre de infortúnios.
A caça ilegal e o abate frequente são trágicos para a preservação das duas espécies, pois a população não consegue se reproduzir no mesmo ritmo das mortes. Cada fêmea só procria a cada dois anos, e tem uma gestação de três meses — depois, ela ainda fica até um ano e meio cuidando do filhote.
Para tentar diminuir esses conflitos, o Programa Amigos da Onça procurou os moradores para explicar a importância da conservação das espécies — parte deles já se engajou na proteção aos felinos. Nos últimos anos, a ONG construiu 18 currais para agricultores de duas comunidades da região.
“A ideia é diminuir o tempo em que os rebanhos ficam expostos na Caatinga, principalmente à noite, quando as onças normalmente saem para caçar”, explica a bióloga Carolina Franco Esteves.
Um estudo da ONG apontou que as estruturas construídas conseguiram reduzir em até 23% o número de perdas de animais de rebanhos — o que acaba tirando os felinos do foco dos agricultores.
Por outro lado, a pobreza e a falta de serviços públicos na região do Boqueirão da Onça, como ocorre em praticamente toda a Caatinga, tornou-se um empecilho para a conservação do bioma.
“Percebemos que, muitas vezes, a revolta dos moradores não era necessariamente contra o bicho, mas contra a condição de vida precária e com pouca assistência do Estado. A onça acaba virando uma espécie de bode-expiatório para outras mazelas”, explica Claudia Martins, agrônoma do Instituto Pró-Carnívoros e pesquisadora da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
“É um grande desafio você chegar em um lugar bastante carente e falar: ‘pessoal, vamos pensar na onça’. As pessoas estão mais preocupadas com as necessidades básicas: se vão ter o que comer, se vão conseguir passar no médico, se terá escola para o filho. Esse diálogo é difícil, mas aos poucos temos conseguido o apoio de muitos moradores”, diz Martins.
‘Exercício de paciência’
Estudar o comportamento das onças e como elas são afetadas por esses problemas também não é tarefa fácil. A captura de um animal para monitoramento, por exemplo, exige uma equipe formada por biólogos, veterinários e mateiros. Eles chegam a ficar 30 dias acampados na Caatinga.
“O Boqueirão é uma área muito grande com poucos indivíduos de onça. Em média, uma campanha de 30 dias consegue capturar apenas um animal, usando armadilhas”, diz Claudia B. Campos.
Segundo ela, um acampamento desses chega a custar R$ 60 mil em estrutura e pegamento de pessoal. “É um exercício de paciência, e nem sempre dá certo. É preciso conhecer bem a região e ter um pouco de sorte, também”, afirma a bióloga.
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