Durante séculos, os moradores de uma ilha japonesa longínqua sobreviveram às intempéries consumindo uma planta altamente tóxica. Agora, essa iguaria mortal corre o risco de morrer. É preciso retirar o miolo da cicadácea para desintoxicá-la
Jamie Lafferty
Eiko Kawauchi anda com uma bengala em uma mão e um machado na outra. Aos 79 anos, ela não se movimenta tão rápido quanto antes, mas, depois de se sentar, ainda consegue manusear a ferramenta com o vigor de uma mulher com metade da sua idade.
Lascas de madeira com aparência úmida logo voam quando Kawauchi corta o tronco de uma árvore de cicadácea, ou sotetsu, como é conhecida no Japão. Kawauchi conta ter aprendido a técnica com seus avós.
Em quase todas as outras partes do país, as pessoas costumam evitar a todo custo essas árvores altamente tóxicas. Quando consumidas cruas, as cicadáceas podem causar sangramento interno, danos ao fígado e até morte.
Mas na distante ilha Amami Oshima, no sudoeste do Japão, a relação dos moradores com essa planta sempre foi diferente.
Comida de dinossauro
Após um processo de trabalho intensivo, as cicadáceas podem ser moídas em uma farinha comestível usada para fazer macarrão e arroz
Jamie Lafferty
Parte do arquipélago das ilhas Ryukyu e mais próxima de Taiwan do que de Tóquio, Amami Oshima é tropical o suficiente para que as cicadáceas prosperem.
Muitas vezes confundidas com palmeiras por causa de seus robustos troncos cilíndricos e folhas longas semelhantes a leques, as cicadáceas existem há 280 milhões de anos e são consideradas fósseis vivos.
De fato, essas folhas eram abundantes durante o Período Jurássico. Mas, enquanto os dinossauros não tiveram problemas para digerir a neurotoxina encontrada nas cicadáceas, essas plantas permanecem mortíferas para os seres humanos.
Para os 67 mil moradores de Amami Oshima, as cicadáceas serviram tanto como alimento básico quanto fonte de sobrevivência em tempos difíceis.
Ao longo dos séculos, os ilhéus desenvolveram uma técnica para remover o veneno dessas árvores tóxicas. O método é trabalhoso e dura quatro semanas.
O processo tem início com o corte do miolo do tronco, que é triturado, lavado e secado vigorosamente e repetidamente de forma a liberar as toxinas naturais. Essa combinação acaba produzindo um amido comestível conhecido como nari, que pode ser usado para fazer macarrão ou adicionado ao arroz.
“É um trabalho árduo, sim”, diz Toshie Fukunaga, observando Kawauchi empunhar o machado.
Junto com duas amigas também da mesma idade, Fukunaga e Kawauchi estão entre as últimas pessoas na ilha que ainda sabem como processar com segurança as cicadáceas.
Há apenas 55 pessoas vivendo no vilarejo costeiro de Ikegachi, situada em uma baía azul-turquesa. As cicadáceas crescem naturalmente na fronteira do assentamento e outras mais são plantadas em lotes.
Como muitas partes do Japão, Ikegachi tem uma população envelhecida e a maioria dos jovens não deixa apenas o vilarejo, mas também a ilha de Amami Oshima. Eles vão para a capital da Província de Kagoshima, na ilha de Kyushu, ou mais ao norte, para uma das megacidades do Japão em busca de trabalho.
As anciãs dizem que nunca se é velho demais para aprender, mas talvez estejam velhas demais para ensinar, pois compartilhar o processo detalhado demanda enorme esforço. Kenshi Fukunaga tem 25 anos e é o único jovem que ainda vive em Ikegachi. “Tentei aprender a trabalhar com o sotetsu”, explica, “mas não é tão fácil.”
“E estamos velhas demais para ensinar as pessoas agora”, admite sua avó, Toshie.
Tentativa e erro
Conhecimento sobre o preparo das cicadáceas limita-se a pequeno grupo de pessoas
Jamie Lafferty
Um dia antes de visitar este vilarejo, eu havia passado algum tempo no Museu Amami, a uma hora de carro ao norte de Ikegachi, na principal cidade da ilha de Amami, também conhecida como Naze. Lá, conversei com o funcionário do museu Nobuhiro Hisashi, que explicou um pouco da história e importância das plantas na ilha.
Ele disse que, no passado, as cicadáceas eram comidas em momentos de desespero. Durante o Período Edo feudal (1603-1868), Amami Oshima se encontrava sob o domínio do clã Satsuma, cujo território correspondia mais ou menos ao de Kagoshima, no sul do Japão.
A ilha era frequentemente atingida por tufões e lutava para cultivar suas plantas tradicionais, mas, devido à sua latitude tropical, era uma das poucas regiões do país onde o açúcar era cultivado.
“O clã Satsuma só enviava suprimentos de arroz quando havia açúcar mascavo”, diz Hisashi.
“Se não houvesse colheita, o povo de Amami Oshima passaria fome. Então, nos anos ruins, comiam cicadáceas.”
Embora não haja provas mostrando como as pessoas aprenderam a consumir cicadáceas com segurança, o palpite de Hisashi é que se tratou de um jogo de tentativa e erro mortífero. Agora, porém, o museu deseja documentar tal processo, a fim de evitar que a tradição morra.
E se a tirania dos governantes de Satsuma acabou com o fim do Período Edo, em 1868, o conhecimento antigo dos ilhéus sobre as cicadáceas voltou a se provar de grande valia durante as duas Guerras Mundiais. Diante do corte das linhas de suprimentos das principais ilhas japonesas e sob o risco de fome generalizada, eles mais uma vez apelaram às cicadáceas para sobreviver.
“Ninguém sabe exatamente quantos anos essa prática tem”, disse Hisashi, “mas tem sido muito importante para a nossa ilha. Agora tentamos produzir livros para que as pessoas não esqueçam”.
Dada a notável história e importância das cicadáceas para a ilha, é surpreendente que grande parte da comunidade Ikegachi pareça razoavelmente contente em deixar a tradição morrer.
Os idosos daqui comeram o sotetsu como parte de uma restrita dieta pós-Segunda Guerra Mundial. Alguns deles ainda se referem a esse período como “sotetsu jigoku” , ou “inferno das cicadáceas”.
Perguntei se é por isso que eles não estão tentando proteger essa tradição. As memórias associadas a essas árvores são traumáticas demais?
“Não”, respondeu Fukunaga rapidamente, “essas memórias são todas felizes. Éramos jovens. Lembro-me muito bem do sabor. Todos nós teríamos morrido se não houvesse sotetsu”, acrescenta.
A verdade sobre o declínio da dieta da ilha é um pouco mais pragmática. Amami Oshima não é tão rica quanto algumas das outras 6.851 ilhas do Japão, mas, em comparação com o passado, vive tempos de abundância atualmente.
Sem samurais exploradores com que se preocupar, produtos importados abundantes e uma melhor compreensão dos métodos agrícolas, poucos habitantes da ilha veem valor em fazer o esforço colossal necessário para consumir cicadáceas com segurança.
O processamento de troncos de árvores tóxicas não só é um trabalho árduo, mas também traz o risco de deparar com a cobra habu, um tipo de víbora venenosa endêmica desse arquipélago. No entanto, Kawauchi, Toshie e seus dois amigos ainda fazem alguns lotes por ano e trouxeram uma panela grande de arroz com nari para eu experimentar.
Enquanto me sentava à sombra de um toldo azul esticado sobre palafitas de bambu, as quatro mulheres formaram um semicírculo ao meu redor. Cada uma observava com atenção enquanto Kawauchi despejava uma grande concha de arroz de cicadáceas coberto com um pouco de alho encharcado de molho de soja em uma tigela de isopor e a passava para mim.
Olhando para esse público septuagenário, eu estava tão nervoso com minhas habilidades com o hashis (palitinhos japoneses) quanto com este prato que poderia me matar. Antes da primeira engolida, perguntei rapidamente quando foi a última vez que alguém passou mal por causa das cicadáceas.
“Não, não, não! Nunca, nunca!”, respondeu Fukunaga, em tom indignado.
Rapidamente comi um pouco de arroz para acalmá-la. A maior surpresa foi que essa planta pré-histórica, infame e tóxica não tinha quase nenhum gosto. Engoli mais um pouco para me certificar.
De qualquer forma, me lembrou um pouco dos baiacus igualmente notórios do Japão, pois, apesar de toda a conversa sobre sofrer uma morte agonizante depois de consumi-la, ela tem um sabor sutil a ponto de ser indetectável.
“O que você achou?”, perguntou Fukunaga.
Enquanto pensava em como responder, ela respondeu por mim. “Não tem muito gosto, certo?”
Talvez não seja surpresa que as cicadáceas não sejam mais consideradas uma fonte de alimento necessária em Amami Oshima. No entanto, enquanto as anciãs de Ikegachi ainda se esforçam para prepará-las, há um restaurante na ilha que mantém viva a tradição de comê-las.
Em uma península a apenas alguns quilômetros do aeroporto de Amami, há um pequeno restaurante de udon (tipo de macarrão japonês) chamado Mash Yaduri. Ninguém que eu conheci tinha certeza de sua localização, e Hisashi havia falado sobre ele como se fosse algum tipo de mito.
Mas eu acabei encontrando-o no final de uma estrada estreita na praia.
Cheguei por volta das 10h, esperando ouvir sobre os pratos especiais de cicadáceas. Enquanto em outras partes da ilha as cicadáceas são mencionadas como algo do passado, aqui, a proprietária e chef Tae Wada e seu marido, Akiho, vendem macarrão feito com amido há cinco anos.
Mesmo sem falar minha língua, Wada parecia saber por que eu estava ali. Alguns minutos depois, uma tigela de cicadáceas e frango em caldo umami quente apareceu na minha frente. Na verdade, seu sabor também era um pouco sem graça, mas a rica história agora estava guardada dentro de mim.
Comentar