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Agro solidário: veja 3 iniciativas que incentivam agricultores a doarem parte da produção

No início da pandemia, produtores tiveram que escolher entre destruir os cultivos ou doá-los. Mais de um ano depois da Covid-19 chegar ao Brasil, os projetos seguem com as entregas de alimentos, hoje, mais estruturados. Entrega de alimentos realizada pelo MST em Pernambuco.
Olivia Godoy / MST Divulgação.
Quem está no campo foi pego de surpresa pela pandemia em mais de um sentido. Além de se encontrarem em um cenário de risco sanitário, agricultores, que estavam acostumados com um ritmo de produção, viram uma queda drástica no consumo em meio a uma lavoura cheia de cultivos prontos para serem colhidos.
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Na pandemia, o consumo, no Brasil, de hortaliças e legumes caiu 36,8% e o de frutas 41,8%, segundo estudo do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB).
Com este cenário, muitos agricultores tiveram que encarar o dilema do que fazer com essa produção, já que deixar o plantio na terra aumentaria as chances de aparecerem pragas. Assim, sobraram duas opções: destruir os plantios ou doá-los?
Em um Brasil, onde o número de famintos ultrapassa 19 milhões de pessoas, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), pode parecer existir apenas uma resposta certa, mas, na verdade, a decisão não é tão simples.
Para doar, o produtor tem que pagar a mão de obra para colher, embalar e investir em logística para entregar os alimentos. Tudo isso em um período no qual o retorno financeiro estava quase nulo. Com o objetivo de diminuir este impacto, algumas iniciativas ajudam os agricultores que decidiram bancar os riscos.
Conheça 3 projetos que optaram por doar e, mais de um ano após a pandemia, continuam com a rede filantrópica.
Escolha solidária
Simone Silotti, fundadora da iniciativa Faça um Bem Incrível e produtora de hortaliças.
Arquivo Pessoal.
Os agricultores de Quatinga, distrito de Mogi das Cruzes, em São Paulo, tiveram que analisar essa questão. A região, dominada por agricultura de pequeno porte, iria perder, em março de 2020, cerca de 6 toneladas de alimentos em 3 dias caso os trabalhadores decidissem destruí-las.
Mas, uma das agricultoras, Simone Silotti, teve a ideia de criar uma vaquinha virtual chamada “Faça um Bem Incrível”, com objetivo de conseguir um retorno financeiro ao menos para pagar as despesas da doação.
“Pedi para que os produtores colhessem normalmente como se fosse para um cliente, que não mudasse absolutamente nenhum padrão e que nós iríamos doar para as favelas e comunidades da região metropolitana de São Paulo. (Pedi) para que eles tivessem fé, que alguém ia ver o nosso trabalho, que a gente realmente iria estar com esse propósito e iria dar certo”, narra Simone.
Então, os produtores começaram a doar e, por meio da vaquinha online, passaram a ter retorno. Pouco tempo depois, algumas empresas se interessaram pelo projeto e deram início a negociações de compras de produtos para a montagem de cestas.
Hoje, contudo, o caixa está negativo, segundo Simone. Ainda assim, as entregas continuam.
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O Faça um Bem Incrível, visa, além de ajudar as pessoas, impedir o desemprego rural e permitir que os produtores consigam manter ao menos uma vida digna.
Simone relata que quando um agricultor é demitido, ele realmente vai para o “olho da rua”, porque é comum que os funcionários morem no local de serviço. Assim, ao perderem o emprego, perdem também a moradia.
Entrega de alimentos pela iniciativa “Faça um Bem Incrível” na zona leste de São Paulo.
Faça um Bem Incrível / Divulgação.
Ao todo, o Faça um Bem Incrível já entregou mais de 200 toneladas de comida para 200 mil famílias em 14 municípios, em parceria com mais de 100 ONGs.
São disponibilizadas diversas variedades de frutas, verduras e legumes, indo da alface ao shimeji, um tipo de cogumelo tradicional em comidas japonesas.
Um dos diferenciais do projeto é que ele pretende dar a sensação de escolha para quem recebe a doação. Então, a orientação para as ONGs é que montem um ambiente com a exposição das variedades disponíveis no dia e que a população, de forma organizada, escolha o que prefere comer.
“Dar a sensação para ela que ela está podendo escolher o que comer, e não dar aquilo que a gente empurra”, explica.
Exposição de alimentos da iniciativa Faça um Bem Incrível
Simone Silotti / Divulgação
Quarentena produtiva
Os produtores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também decidiram doar a desperdiçar a comida plantada.
“No começo a gente falava ‘é melhor a gente doar, do que perder aqui no campo’, então a gente juntou e doamos para o lar da criança e nos bairros. Depois de fato, sim, falamos ‘ficar só doando a gente também não aguenta’, porque também precisamos de recurso para poder plantar“, relata Joice Lopes, produtora no assentamento Dandara, no município de Promissão, em São Paulo.
As doações do assentamento de Joice atendem a região de São Paulo, mas o MST reproduz ações do tipo em todo o Brasil. Desde o início da pandemia, mais de 5 mil toneladas de alimentos e 1 milhão de marmitas foram doadas pela organização.
Coleta de alimentos no assentamento Dandara do MST
Arquivo Pessoal
A agricultora explica que ainda hoje algumas doações não possuem nenhum retorno financeiro para o produtor. O MST adotou o que ela chama de “quarentena produtiva”
“Vamos ficar em casa, vamos produzir e vamos exercer a nossa solidariedade com o nosso povo. Boa parte do nosso povo entendeu o recado, ficou em casa, começou a produzir”.
As doações são focadas na periferia e em comunidades. As cestas incluem frutas, verduras e legumes, além de parcerias com agroindústrias de outras regiões, caso do arroz do Rio Grande do Sul.
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Uma parcela das produções do MST em todo o país vai para entregas em forma de marmitas, em iniciativas, como o “Marmita Solidária”, em conjunto com a Periferia Viva em São Paulo, ou o “Marmita da Terra” no Paraná.
Entregas da Marmita da Terra realizadas pelo MST no Paraná.
Jade Azevedo / Divulgação MST.
Apesar de ajudar quem está na cidade, os trabalhadores também enfrentaram a fome durante a pandemia. Para impedir que este problema se alastrasse, os agricultores decidiram se unir.
“A gente juntou dentro do assentamento, ‘vamos fazer uma junção do que a gente tem e vamos dividir entre nós mesmos’. Um deu uma caixa de mandioca, outro deu abóbora, nós juntamos tudo e deu várias cestas e distribuímos para as famílias aqui dentro do próprio assentamento”.
Joice relata que os produtores do MST da sua região sofreram muito com a seca que atingiu a área e acabaram tendo que trocar o trabalho da produção de legumes pelo leite. Ainda assim, parte do gado também acabou morrendo de fome. Para diminuir o prejuízo, trechos da lavoura também vão para cultivar alimentos para os animais.
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Joice Lopes ajuda a organizar a doação de alimentos do assentamento Dandara em São Paulo.
Arquivo Pessoal.
A agricultora é uma das pessoas que participa da coleta dos itens para a doação. Ela conta que cada membro do assentamento tem a liberdade de escolher o quanto doar.
“Temos aqui um produtor, o seu Norberto, quando você vai lá, ‘olha seu Norberto, a gente está fazendo arrecadação’, você pensa que ele vai doar uma, duas caixas… Não, ele te enche o carro, ele tem uma alegria de doar. Ele fala ‘se todo mundo pudesse fazer um pouco disso, o mundo seria diferente’”, relata.
Conexão entre quem tem e quem precisa
Não apenas agricultores, “gente da cidade” também viu que, em meio ao cenário caótico da fome e os produtores perdendo meios de comercialização, era importante fazer com que as duas necessidades fossem atendidas.
Com essa visão, em março do ano passado, Aziz Constantino, um dos idealizadores da iniciativa Orgânico Solidário, reuniu alguns amigos para que juntos conseguissem desenvolver algum projeto que atendesse essa demanda social.
O foco da iniciativa é suprir a população da periferia com alimentos que não são distribuídos na cesta básica, portanto, frutas, verduras e legumes.
“Você vai na favela, você abre a geladeira tem uma água, no máximo um resto de comida que sobrou. No armário tem 7 sacos de farinha, 2 sacos de arroz e 5 de açúcar. Cara, é complexo de viver assim”, comenta.
Cesta do Orgânico Solidário
Orgânico Solidário / Divulgação
A composição entregue pela iniciativa foi formulada por nutricionistas. Nela, vão 6 kg de alimentos, com capacidade para alimentar 5 pessoas por cerca de 5 dias ou 15, se uma cesta básica tradicional acompanhar a deles.
As variedades entregues são organizadas conforme o período de safra. Para Constantino, isso traz até um ar divertido para o projeto, pois as famílias sempre serão surpreendidas com o que receberão.
Eles também têm como objetivo ensinar sobre a alimentação orgânica e a importância nutricional de variar a alimentação, incentivando o desenvolvimento de hortas nas comunidades. Um dos meios para isso é a caixa na qual os alimentos são transportados, que contém instruções educativas sobre o tema e sobre de onde veio a comida.
Horta em casa: como começar?
O Orgânico Solidário funciona, basicamente, como uma ponte entre agricultor, doador e a pessoa que irá receber os produtos.
Por meio da plataforma, pessoas interessadas podem decidir quanto irão doar e o valor é revertido para arcar com os custos das cestas de alimentos, focando em legumes, frutas e verduras orgânicas. Os doadores incluem empresas fazem colaborações recorrentes.
Já para chegar ao consumidor final, a instituição tem parcerias com ONGs que organizam as entregas. Por causa disso, cerca de 1.000 famílias recebem as cestas a cada 15 dias.
Até o momento, mais de 50 mil caixas com comida já foram entregues, beneficiando 85 comunidades.
Entrega de alimentos pelo Orgânico Solidário a Escola Marista Mont Serrat, em Florianópolis, Santa Catarina
Reprodução / Redes Sociais
Apesar de várias empresas se interessarem pelo Orgânico Solidário, além das pessoas físicas, que, inclusive, movimentam campanhas online para doação, a quantidade de comida entregue nem sempre é suficiente para atender a demanda.
“Tem uma história que me marcou bastante. Era uma entrega para 100 famílias, se eu não me engano, quando chegou lá tinha umas 300 famílias. A gente ficou ‘caraca, só tem 100 cestas’”, narra o fundador da iniciativa.
Na ocasião, as pessoas da comunidade se organizaram para dividir os alimentos recebidos entre todos os membros.
“É arrepiante, cada um com seu saco, cada um tinha um senso de necessidade, pegava só 6 coisas, tinha mãe que pegava várias coisas. Então, aquela multiplicação de 100, virou 300. Quando você olha a sua geladeira você fala ‘eu sou privilegiado e talvez não use tão bem quanto deveria’”, completa.
Do outro lado, o da produção, mais de 56 agricultores estão envolvidos, em todas as regiões do Brasil. Do custo de cada cesta, cotada em R$ 50,00, R$ 45,00 vão para quem planta. Para Constantino, o benefício de participarem do projeto é terem contratações recorrentes por um preço justo.
Os produtores Elaine e Sérgio, fazem parte do Orgânico Solidário, por meio do projeto, conseguiram integrar mais filhos à agricultura.
Reprodução / Redes sociais
O fundador da iniciativa relata que envolver o agro na filantropia serve como um incentivo para os novos membros da agricultura familiar.
“Tem uma família também de Santa Catarina que usou a gente como plataforma para criar uma conexão maior dos filhos com o projeto deles de negócio. (…) O que acontece é que os filhos não gostavam tanto dessas coisas, o negócio deles era mais o mundo da cidade, tecnologia. Com o projeto, os filhos perceberam a importância e se conectaram mais com o lugar de sucesso daquilo, porque conecta novas gerações também”, relata Constantino.
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