Projeto de Lei 490, de 2007, é fortemente criticado por indígenas e entidades. Proposta prevê que, para ter uma terra demarcada, povos precisam comprovar ocupação em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Indígenas mostram capsulas de armamento não letal usado contra os representantes das etnias, em confronto no DF
Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo
Representantes indígenas protestam em frente à Câmara dos Deputados contra o PL 490/2007
Tiago Miotto/Cimi
Indígenas de diferentes etnias do Brasil protestam há duas semanas em frente à Câmara dos Deputados, em Brasília, contra a aprovação do Projeto de Lei 490, de 2007. Ele prevê mudanças no reconhecimento da demarcação das terras e do acesso a povos isolados.
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Na terça-feira (22), quando havia expectativa se o projeto avançaria na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o protesto de indígenas contra o PL 490 foi reprimido pela polícia em Brasília. Nesta quarta-feira (23) o tema tem chance de continuar sua tramitação. Antes, em 2008, foi aprovado na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural e rejeitado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
O que prevê o projeto de lei 490/2007?
O PL 490/2007 determina que são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988. Ou seja: é necessária a comprovação da posse da terra no dia da promulgação da Constituição Federal.
Pela legislação atual, a demarcação exige a abertura de um processo administrativo dentro da Fundação Nacional do Índio (Funai), com criação de um relatório de identificação e delimitação feito por uma equipe multidisciplinar, que inclui um antropólogo. Não há necessidade de comprovação de posse em data específica.
Além da implementação do marco temporal, o texto também proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas previamente, independentemente dos critérios e da reivindicação por parte dos povos indígenas interessados.
Há, ainda, um ponto bastante criticado por organizações não-governamentais a respeito de um trecho do projeto que abriria espaço para uma flexibilização do contato com povos isolados, o que poderia causar um perigo social e de saúde às comunidades.
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O que muda na demarcação de terras indígenas?
Se aprovado, as terras futuramente demarcadas ou em processo de demarcação devem comprovar a ocupação no dia 5 de outubro de 1988. Advogada do Instituto Socioambiental, Juliana de Paula Batista acredita que essa exigência causa extrema dificuldade para indígenas que habitam e habitavam as terras. Ela cita como exemplo os territórios ocupados por avós e outros familiares desde décadas ou séculos passados em que os registros formais eram mais escassos.
“Muitos indígenas nesta época não tinham contato com a sociedade ou eram povos de recente contato. Os indígenas até 1988 eram tutelados pela União, eles sequer eram considerados povos com capacidade jurídica plena”, explicou a advogada.
“Tanto a forma de comprovar que estava na área quanto as formas de comprovar que foram expulsos dessa área são muito difíceis de serem feitas por esses povos que têm relações muito diferenciadas com a sociedade nacional”, complementa Juliana Batista.
Além disso, também poderá ser “vedada a ampliação de terras indígenas já demarcadas”, como aponta o próprio texto do projeto. Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lembra o caso do povo Muky, do Mato Grosso, que recebeu em 1968 uma terra do governo federal que estava fora de sua ocupação histórica. Ele conta que a demarcação foi feita de forma irregular, muito menor do que o espaço de fato utilizado pela comunidade tradicional. Neste caso, a nova lei, se aprovada, impede a revisão do território.
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Bruno Jorge/Instituto Socioambiental (ISA)
O que muda em relação aos povos isolados?
São povos isolados aqueles indígenas que não mantêm contato com o homem branco, com a sociedade, ou possuem uma relação bastante restrita.
O artigo 29 do projeto diz: “no caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”. Neste caso, segundo Batista, a lei abre um precedente para que o governo decida o que é “utilidade pública”.
O texto não especifica quais são os critérios para “utilidade pública” que poderiam levar ao contato com indígenas isolados no país.
“Os povos que vivem em isolamento voluntário sabem que ali perto de onde eles vivem tem uma fazenda, tem uma vila, tem outros povos, e é uma escolha deles fazer isolamento”, explica a advogada.
“E é um política do estado brasileiro desde a redemocratização respeitar a opção desses povos e também não ir até lá forçar um contato. Até porque esses povos não têm memória imunológica, podem morrer por causa de uma gripe”, argumenta Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental.
O que dizem os indígenas?
Organizações indígenas se posicionam fortemente contra a aprovação do PL 490. Diferentes povos se reúnem há duas semanas em frente à Câmara dos Deputados e protestam contra o marco temporal de 1988 e as outras mudanças previstas no texto. Em nota, após confronto com a polícia nesta terça-feira, o Cimi defendeu o “direito de manifestação” e disse que:
“Ele foi duramente atacado para que se possam aprovar o Projeto de Lei nº 490/2007, que tem por objetivo a exploração e a apropriação das terras indígenas. Estas áreas de ocupação tradicional são públicas e, portanto, de toda a sociedade brasileira e a nossa Constituição não permite tacanho abuso”.
O que diz o relator do projeto?
O relator Arthur Maia (DEM/BA) diz que o marco temporal de 1988 já tem jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) com base em outra decisão, a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Na época, ministro Ayres Brito caracterizou:
“[…] Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, deve apreciar o tema nas próximas semanas e, por isso, advogados ligados às organizações indígenas argumentam que o tema ainda está em aberto, sem marco temporal definido. Isso porque em 2019 o STF definiu que o processo relacionado ao povo Xokleng, em Santa Catarina, deve ser tratado como caso de “repercussão geral”. Ou seja, a análise do processo vai definir a jurisprudência sobre o tema.
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