Dois distritos indígenas paraenses com relato de disseminação de fake news chegam a ter índices pouco acima de 40% de vacinados com as duas doses. Especialistas apontam negacionismo de cunho religioso. A vacinação contra a Covid-19 de indígenas que moram em aldeias nos estados da chamada Amazônia Legal (Pará, Mato Grosso, Maranhão, Amapá, Amazonas, Rondônia, Roraima, Acre e Tocantins) atingiu a cobertura de 77% para a primeira dose e, para a segunda, 62%. Os dados são da plataforma oficial do Ministério da Saúde compilados até sexta-feira (18).
A cobertura vacinal dos indígenas nesta região está cerca de 10 pontos percentuais abaixo da registrada entre povos tradicionais de todo o país – a taxa nacional é de 83% para a primeira dose e de 72% para a segunda. O grupo é considerado prioritário pelo PNI (leia mais no final da reportagem).
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Uma análise por microrregiões, entretanto, mostra que o índice não corresponde à realidade de todos os povos indígenas da floresta. Na verdade, há um abismo entre aldeias. De acordo com especialistas e envolvidos na campanha, o principal fator é a influência religiosa. As regiões onde há uma presença maior de pastores contrários à vacinação são as que têm as menores taxas.
Acre e Pará são estados com os distritos indígenas com os índices mais baixos. Eles não chegaram a 60% de indígenas vacinados na segunda dose – até 20 pontos percentuais abaixo do que é visto nas etnias de todo o Brasil. Todos os outros estados da Amazônia Legal mantêm uma taxa igual ou acima de 60% na aplicação dos imunizantes, taxas que variam muito de região para região.
Elcio Horiuchi/G1
O G1 procurou as secretarias de Saúde do Pará e do Acre na manhã deste domingo, mas não obtivemos resposta até a última atualização desta reportagem.
Distritos mais afetados por fakes
Dois Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) paraenses têm as piores taxas de vacinação do país. Kayapó do Pará e Rio Tapajós, com 43% e 41% de imunização das etnias na primeira dose. Ainda em fevereiro, fontes do DSEI do Rio Tapajós já haviam informado ao G1 uma resistência à vacinação ligada à disseminação de informações falsas, como a mensagem que se referia à “vacina com chip da besta fera”. As mesmas fontes ainda dizem que simplesmente “eles [indígenas] não querem a vacina”. O problema persiste, de acordo com Caetano Scanavinno, do Projeto Saúde e Alegria, com sede na região.
“Historicamente, sempre existiu resistência ao remédio ‘de branco’. Mas o que a gente está vendo agora é uma recusa acima da média, ajudada também por uma campanha de desacreditação e fake news propagadas numa região já complicada”, disse.
“É muita desinformação circulando, com histórias absurdas como de um chip implantado no corpo de quem for vacinado, para ser monitorado pelos chineses, ou de que a vacina é feita por embriões de aborto. Ou mesmo que, se tomar vacina, vai virar jacaré, como bem disse o presidente. São desinformações que geram medo e matam”.
Vacinação por DSEI na Amazônia Legal
Elcio Horiuchi/G1
Religião e a negativa dos pastores
Nos últimos meses, o G1 conversou com moradores, líderes comunitários, pesquisadores, indígenas e organizações não-governamentais localizadas na Amazônia. Por que alguns DSEIs têm uma cobertura tão abaixo da dos outros? O que está gerando o abismo das taxas entre eles?
“O principal desmotivador das vacinas foram os evangélicos. Chegaram nos últimos dez anos, teve um crescimento muito grande da igreja evangélica lá dentro [da Amazônia]. Aldeias inteiras que se evangelizaram e que não quiseram”, disse Paulo Junqueira, coordenador-adjunto do Programa Xingu, do Instituto Socioambiental.
Junqueira cita um exemplo: “Tem um caso que eu lembro: a equipe que estava no barco desceu e chegou uma pessoa e disse: ‘muito obrigado por vocês terem vindo, mas aqui ninguém vai vacinar não, vocês podem seguir viagem’.” A preocupação em considerar o aspecto religioso fez o ISA criar uma cartilha direcionada especialmente ao público evangélico. Veja uma parte abaixo:
Cartilha criada pelo ISA para incentivar a vacinação no público evangélico
Reprodução
A comparação entre as quatro áreas do território indígena do Xingu é um exemplo claro da influência religiosa e, também, das informações falsas. As duas áreas com maior número de mortes e rejeição à vacina estão diretamente influenciadas pelas duas questões.
Oreme Ikpeng, do povo Ikpeng na aldeia Moygu, no médio Xingu, reforça o óbvio: são povos diferentes e com religiões diferentes. Em todo o território do Xingu 79% receberam a segunda dose, segundo o Ministério da Saúde. Há uma variação entre as 4 regiões existentes dentro da terra indígena.
“Somos 16 povos falando sua língua, sua cultura, sua tradição. Nós temos vários meios de comunicação entre nós e estamos tentando orientar quem não quer [a vacina]. Mas obrigar não é nosso jeito de resolver as coisas”, disse Oreme.
Oreme Ikpeng toma dose de vacina contra a Covid-19
Arquivo Pessoal
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Tentando contato
Se obrigar não é o jeito, Evelin Placido dos Santos, enfermeira da área técnica de Imunização do Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tenta conversar e pedir apoio. Ela trabalhou na campanha durante a epidemia do H1N1 nos territórios indígenas. Na época, também com uma certa desconfiança, foi possível convencer pastores a se vacinarem em frente aos moradores e assim demonstrar a segurança da vacina.
“O ato de se vacinar na frente deles é um ato importante. É uma estratégia que a gente utiliza também para povos de recente contato, em que primeiro a gente vacina toda a equipe na frente deles para que eles se sintam seguros”, contou.
“Com a Covid, os pastores foram abertos, eu fiz contato telefônico e falaram que iriam conversar com as comunidades, iriam incentivar a vacinação, iriam falar sobre a importância da vacina, mas, em algumas situações, eu não senti receptividade. O pastor chegou a falar: ‘a gente vai confiar como se é muito novo, né?'”. Até o momento, 438 indígenas morreram devido à Covid-19.
Amazônia, Amazonas e realidade no Brasil
A cobertura de vacinação dos indígenas na Amazônia Legal está abaixo da imunização do mesmo grupo em todo o país. A taxa nacional de indígenas vacinados é de 83% para a primeira dose e de 72% para a segunda – perto de 10 pontos percentuais acima do valor visto quando analisamos apenas os povos indígenas dos nove estados.
Além dos distritos cujos relatos apontam forte influência do negacionismo de cunho religioso, há ao menos outro DSEI também com baixa vacinação onde o impacto pode ter relação com eventuais dificuldades logísticas.
O DSEI Alto Rio Negro, no Amazonas, tem 36% de adesão à segunda dose. Luiz Penha Tukano, biólogo responsável pelos Projetos Emergenciais da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) acompanha a região. As notícias falsas também são um dos motivos de negativa à vacinação, mas destaca outro ponto.
“Muitos desses distritos aqui também dependem muito da logística. Então, estão tendo dificuldades de entrar, a equipe passa 30 dias para vacinar. Tem que levar vacina e voltar. Provavelmente não estão alimentando direito o sistema de dados da imunização”, avalia.
Os indígenas foram incluídos entre os quatro perfis do primeiro grupo prioritário da vacinação, somando já 151 dias de campanha de vacinação. Em 18 de fevereiro, apenas 30% haviam se vacinado na Amazônia Legal.
Desde o começo da campanha, a quantidade total de indivíduos indígenas a serem vacinados também mudou: segundo o Ministério da Saúde, o censo foi atualizado. A previsão inicial era de vacinar um total de 431.983 indígenas contra a Covid-19; agora, são 408.232.
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