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Meio Ambiente

Como impedir que um paraíso tropical seja dominado por ratos

Palmyra era um atol isolado e tranquilo do Pacífico, até uma invasão de ratos-pretos no século 20 que transformou seu ecossistema. Ratos de laboratório ‘comuns’ não são infectados pelo novo coronavírus – por isso as pesquisas usam animais geneticamente modificados
Divulgação
Durante a 2ª Guerra Mundial, militares americanos basearam milhares de marinheiros no atol de Palmyra, um anel de ilhotas intocadas no Oceano Pacífico. Mas os navios também levaram uma série de passageiros clandestinos para as ilhas: ratos-pretos.
Os roedores prosperaram, se multiplicando rapidamente e se alimentando de pequenos caranguejos, mudas de árvores, ovos e filhotes de aves marinhas. E a invasão de coqueiros em plantações abandonadas trouxe mais problemas para os pássaros, privando-os de seu habitat natural.
No fim do século, os ratos e as palmeiras haviam transformado todo o ecossistema do atol. Oito espécies de aves marinhas que perambulavam pela área mais ampla desapareceram — de acordo com conservacionistas, possivelmente porque os ratos provocaram sua extinção local.
Algumas espécies de caranguejos estavam diminuindo ou até mesmo sumindo completamente.
Em outras ilhas tropicais, foram encontradas evidências de que invasões de roedores estavam afetando espécies supostamente distantes como os recifes de coral, ao interromper seu suprimento de excrementos de aves marinhas, ricos em nutrientes.
Os coqueiros também prejudicaram a delicada cadeia de nutrientes que sustentava a vida em Palmyra e em seus arredores. Eles ocuparam metade do atol. As aves marinhas evitavam fazer ninho nas palmeiras, preferindo árvores nativas robustas com galhos.
Corais são vistos em Palmyra, no Pacífico
AP Photo/USFWS, Jim Maragos
À medida que o suprimento de excrementos dos pássaros diminuía, o impacto se espalhou por todo o ecossistema. Em ilhotas com florestas de palmeiras, o solo era mais pobre em nutrientes do que naquelas com florestas nativas, assim como a água ao longo delas.
O plâncton presente no litoral das florestas de palmeiras era menos abundante, e havia menos arraias manta, que se alimentam do plâncton, do que ao longo da costa de floresta nativa.
Os efeitos em cascata mostram como uma intrincada rede ecológica pode ser quebrada por uma única espécie invasora. Mas agora também há evidências de que essa rede pode ser reparada.
“As ilhas nos oferecem esta oportunidade de esperança e restauração, porque você pode remover espécies invasoras das ilhas e ver uma recuperação dramática”, afirma David Will, gerente de programa da Island Conservation, organização sem fins lucrativos especializada na remoção de espécies invasoras.
As ilhas desempenham um papel descomunal na biodiversidade do planeta. Elas correspondem a apenas 5% da área terrestre global, mas abrigam cerca de 19% das espécies de pássaros e 17% das plantas com flores.
Atóis tropicais como Palmyra também nos colocam diante de um mistério ecológico irresistível: eles são exuberantes e abundantes em vida, mas existem em ambientes muito pobres em nutrientes.
Imagem Atol das Rocas, o único do Atlântico no Hemisfério Sul
Maurizélia Brito/G1
“Quando você começa a pensar nos atóis, eles estão em lugares muito, muito remotos, onde há muito, muito pouca entrada de nutrientes para o meio ambiente”, diz Rebecca Vega Thurber, microbiologista da Oregon State University, nos Estados Unidos, especialista em ecossistemas marinhos.
As aves marinhas atuam como uma espécie de serviço de entrega de nutrientes para esses lugares remotos. Elas fazem ninhos em árvores nativas, protegidas por galhos e folhagens, e voam para longe para pescar no mar.
Quando voltam, seus excrementos, chamados guano, fertilizam o solo e escorrem para a água, nutrindo o plâncton e as algas, assim como os peixes que se alimentam deles.
A mistura de nutrientes no guano, sobretudo a proporção de nitrogênio para fósforo, é considerada ideal para corais, assim como para as algas benéficas que vivem neles.
Mas quando os ratos chegam, tudo isso muda. Os ratos podem destruir a população de aves marinhas de uma ilha e, portanto, seus suprimentos de nutrientes. Os excrementos dos ratos apenas reciclam o que já existe na ilha, uma vez que não adicionam nutrientes de outros lugares.
“Depois que você perde as aves marinhas, não consegue mais esse elo de nutrientes do mar aberto para as ilhas e recifes”, explica Casey Benkwitt, bióloga e especialista em recifes de coral da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
“Então, você perde completamente esse subsídio de nutrientes que vai para os recifes.”
Um estudo de 2018 no arquipélago de Chagos, no Oceano Índico, descobriu que ilhas sem ratos abrigavam comunidades de aves marinhas muito maiores e tinham níveis de nutrientes significativamente mais altos em seus recifes de coral, em comparação com as ilhas onde os ratos haviam sido introduzidos.
Essa injeção de nutrientes pode tornar os recifes mais resistentes. Benkwitt e seus colegas estudaram o branqueamento de corais ao redor do arquipélago de Chagos, uma reação de estresse ao aquecimento da água durante a qual os corais expelem suas algas simbióticas e ficam brancos.
Eles descobriram que os corais no entorno das ilhas habitadas e livres de ratos foram igualmente afetados por esse branqueamento.
Mas perto das ilhas livres de ratos que tinham muitas aves marinhas, uma alga rosa conhecida como alga calcária cresceu após o branqueamento. Essa alga atrai corais bebê, que se instalam e crescem, formando a base para a reposição do recife estressado.
Havia também mais peixes herbívoros de recife em torno das ilhas livres de ratos, que se alimentam de algas marinhas que poderiam tomar conta dos corais.
Ficou claro que, ao introduzir inadvertidamente uma espécie invasora de roedor, todo o ecossistema de uma ilha tropical poderia ser levado ao limite.
Ratos na copa das árvores
“Quando cheguei a Palmyra, os ratos estavam em todos os lugares”, lembra Alex Wegmann, diretor científico de Palmyra na The Nature Conservancy, organização ambiental sem fins lucrativos que comprou o atol de proprietários privados em 2000.
O atol é hoje um Refúgio Nacional de Vida Selvagem administrado pelo Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, que inclui uma reserva natural administrada pela The Nature Conservancy. Wegmann estuda o ecossistema de Palmyra desde 2004, quando os ratos dominaram a ilha.
“Eles estavam na copa das árvores, estavam no chão, estavam debaixo da terra.” Cerca de 20 mil ratos viviam em Palmyra, com uma densidade populacional cerca de 10 vezes maior do que em climas mais frios, graças ao ambiente tropical. Os ratos nos trópicos equatoriais se reproduzem o ano todo, porque está sempre quente e há bastante comida.
O plano era se livrar dos ratos e, na sequência, das palmeiras, que provavelmente se espalhariam ainda mais sem os roedores para controlá-las. Para que uma erradicação fosse bem-sucedida, todos os ratos de uma ilha precisariam ser mortos, caso contrário, a população se recuperaria.
De acordo com James Russell, biólogo conservacionista da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, a regra é que, se uma única rata grávida for deixada em uma ilha de mil hectares, o lugar estará infestado por ratos em dois anos — e mais cedo ainda nos trópicos.
Essa remoção completa é difícil em qualquer lugar, mas sobretudo nos trópicos. Um estudo de 2015 mostrou que 16% das erradicações de ratos em ilhas tropicais fracassaram, em comparação com cerca de 6% fora dos trópicos.
Os caranguejos terrestres são um problema comum. Eles são imunes ao veneno da isca, por isso gostam de comê-la — e podem engoli-la antes que os ratos a peguem. “Já vi eles com uma isca em cada uma de suas oito patas, uma na boca e uma em cada braço”, diz Russell.
“Eles enrolam uma embaixo de cada pata e ficam sobre elas — é meu, meu, meu, meu. E eles ficam irritados se você chega perto deles.”
A solução está na preparação diligente, de acordo com Araceli Samaniego, ecologista especializada em roedores do instituto de pesquisa Landcare Research, da Nova Zelândia.
Ela trabalhou em projetos de erradicação em todo o mundo, mas começou no México, onde sua equipe removeu ratos de 15 ilhas tropicais, com uma taxa de sucesso de 100%.
Seu método envolvia passar meses e até anos estudando cada ecossistema, acampando em ilhas desabitadas durante semanas para entender suas estações, características, plantas e animais. “90% do trabalho é feito antes de você chegar lá com a isca”, diz Samaniego.
Em uma ilha, ela e sua equipe aprenderam até a trabalhar rodeados por uma população local de crocodilos. “No terceiro ano, você está totalmente relaxado em relação a eles, e todos têm nomes. É só mais uma coisa com a qual você precisa estar atento, mas tudo bem.”
A preparação fez com que no dia da erradicação a equipe não tivesse surpresas e soubesse exatamente onde, como e quando colocar a isca para obter o melhor resultado. Em florestas de mangue inundadas, por exemplo, eles prenderam blocos de isca nos galhos do manguezal.
Em Palmyra, onde Samaniego também trabalhou ao lado de cientistas de todo o mundo, os ratos foram erradicados em 2011, em um projeto conjunto com o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos e a Island Conservation.
A equipe escolheu um momento em que a maioria das aves migratórias estava ausente. E capturaram temporariamente o máximo de remanescentes que puderam.
Um helicóptero soltou a isca com veneno, de forma que parte dela pousou nas copas das árvores, onde poderia ser alcançada pelos ratos, mas não pelos caranguejos, enquanto outras caíram no chão. Desde então, Palmyra está livre de ratos.
Ainda assim, a erradicação teve um preço. Doze pássaros e 47 tainhas foram encontrados mais tarde mortos com resíduos de veneno de rato em seus corpos.
Coral Wolf, bióloga que trabalha para a Island Conservation, viajou para Palmyra um mês após a erradicação.
Antes de partir, ela verificou seus equipamentos em busca de sementes e insetos e congelou suas roupas para matar qualquer passageiro indesejado que pudesse se agarrar a elas. Em seguida, embarcou em um pequeno avião do Havaí para o atol, que fica a 1,6 mil quilômetros ao sul.
Na chegada, várias peças de roupas que nunca haviam sido usadas foram direto para um freezer na estação de pesquisa na ilha principal. Cada vez que Wolf partia para as outras ilhotas do atol, ela vestia essas roupas congeladas para evitar qualquer contaminação entre as ilhas.
“É sempre refrescante se vestir no início do dia de trabalho”, diz ela.
Wolf estava procurando sinais de recuperação em plantas nativas, como a árvore Pisonia, ideal para a nidificação de aves marinhas.
Ela esperava encontrar alguns brotos. Em vez disso, ela se deparou com um “tapete inteiro de mudas de Pisonia”. Anteriormente, os ratos as mantinham sob controle.
Um ano depois, as mudas de Pisonia estavam na altura do joelho. Após mais dois anos, mediam alguns metros. Em 2016, estavam “bem acima da cabeça”, lembra Wolf. Outras espécies de árvores nativas também ganharam espaço. A floresta local estava se recuperando.
Wegmann, da Nature Conservancy, também notou inúmeras mudanças depois que os ratos foram embora. Duas novas espécies de caranguejos terrestres foram observadas nas ilhas.
Provavelmente, elas já existiam antes, mas os ratos mantiveram seu número baixo demais para serem avistadas. Uma vez, ele caminhou ao longo da costa e viu 50 caranguejos-rocha correndo. Até então, ele só os tinha visto em grupos de dois ou três:
“Havia todas essas observações super bacanas da vida se recuperando.”
Folhas de palmeira por toda parte
Nem toda aquela vida revigorante era nativa de Palmyra. Os coqueiros invasores de plantações abandonadas estavam se espalhando com mais força do que antes.
Isso já era esperado, uma vez que os ratos não comiam mais as mudas, mas ainda assim era impressionante de observar.
“De repente, você não conseguia mais andar”, lembra Wolf. “Seu rosto estava cercado por todas essas folhas de palmeira.”
Como os ratos, as palmeiras podem prejudicar o elo entre a terra e o mar, já que as aves marinhas evitam fazer ninhos em suas copas expostas e oscilantes.
Se livrar das palmeiras exigiu outras intervenções, incluindo injeção de herbicida nos troncos, um projeto que ainda está em andamento.
O outro desafio era atrair de volta para o atol as oito espécies de aves marinhas desaparecidas.
Um esforço contínuo para trazê-las de volta envolve o que Wegmann chama de “nossa discoteca de aves marinhas”: alto-falantes eletrônicos que emitem o canto de quatro espécies de aves marinhas, em uma espécie de transmissão de rádio para os pássaros que passam.
Essa estratégia se destina a atrair a grazina-das-fênix, a pardela-de-audubon, a pardela do Pacífico e o painho-de-papo-branco.
Embora os esforços estejam em andamento, os pesquisadores ainda não viram sinais do retorno de qualquer uma das oito espécies de aves marinhas desaparecidas.
Para incentivar esse movimento, a equipe planeja colocar ao redor do atol réplicas de madeira de mais duas espécies, o trinta-réis-de-dorso-cinzento e a grazina-cerúlea, em aglomerados que lembram colônias em nidificação.
A ideia, diz Wegmann, é que uma ave marinha voando possa vê-los e pensar: “Uau, há 30 parentes meus lá, talvez haja algo acontecendo, eu deveria dar uma olhada”.
‘Lindo e restaurável’
Incentivados pelas evidências de que a restauração é possível em atóis como Palmyra, conservacionistas estão se voltando para outras ilhas tropicais.
Uma equipe de especialistas, incluindo Samaniego da Landcare Research, está planejando erradicar ratos das ilhas do arquipélago de Chagos, usando drones para soltar a isca, uma solução prática em ilhas remotas.
No atol de Tetiaroa, na Polinésia Francesa, ao norte do Taiti, está em andamento um projeto semelhante ao de Palmyra.
Tetiaroa é desabitada, exceto por uma estação de pesquisa e um hotel de luxo. E apresenta desafios específicos, como a coexistência de duas espécies de ratos: o rato-do-pacífico, que se acredita ter sido introduzido há séculos por viajantes polinésios, e o rato-preto, que provavelmente surgiu no século 20.
Os ratos nadam de um lado para o outro, entre algumas das 12 ilhas, o que significa que se você removê-los de apenas uma, eles podem voltar a partir de outra.
No entanto, uma das ilhotas de Tetiaroa, Reiono, ficou livre de ratos em 2018, e outras duas, no ano passado. O objetivo é erradicar os ratos de todo o atol.
“É um atol lindo e restaurável”, afirma Russell, da Universidade de Auckland. Ele estudou os ratos em Tetiaroa pela primeira vez com um colega em 2009, andando de caiaque entre as ilhotas e dormindo em barracas.
Do ponto de vista científico, as 12 pequenas ilhas são como “microlaboratórios”, diz ele, cada um sutilmente diferente.
“Estamos em um momento em que temos mais capacidade para fazer isso, o que chamo de ‘experimentos de superecossistema’, em que você pode rastrear várias coisas fazendo com que colaboradores de todo o mundo façam sua parte e integrar depois os dados”, diz Rebecca Vega Thurber, da Oregon State University.
Ela está supervisionando um novo projeto de pesquisa de ecologia marinha em Tetiaroa e planeja fazer estudos semelhantes em Palmyra, descobrindo as interações entre a conservação da terra e a vida marinha.
Olhando para a história recente de Palmyra, Wegmann a vê como uma fonte de esperança. As ilhas tropicais podem parecer frágeis, mas podem se revelar surpreendentemente robustas.
Segundo ele, a história da conservação de Palmyra deve nos lembrar de duas coisas: “Um, que a natureza é resiliente. E dois, que nós, como seres humanos, podemos resolver alguns dos grandes problemas que causamos”.
Veja reportagem de fevereiro de 2021 sobre ratos em São Paulo.
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