Dados foram compilados por uma nova ferramenta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Gado pasta em meio à fumaça causada por um foco de queimada da Amazônia em Rio Pardo, Rondônia, em setembro de 2019.
Ricardo Moraes/Reuters
Dados de uma nova ferramenta do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que mais de um terço dos quase 150 mil focos de queimadas ocorridos na Amazônia em 14 meses aconteceram em terras públicas sem destinação, que são terras da União que não estão no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e que deveriam ser preservadas pelo governo.
A nova ferramenta do Inpe permite analisar as áreas queimadas na Amazônia entre agosto de 2019 e setembro de 2020 para observar em que tipo de terra ocorreram os incêndios. Assim, é possível ver que as terras públicas sem destinação foram atingidas por 53.359 mil focos de incêndio no período, o equivalente a mais de 35% de todas as queimadas no bioma. Na média, o total equivale a 127 queimadas ilegais todos os dias apenas nestas áreas pertencentes à União.
A diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar, explica que, com esta nova diferenciação por terras inscritas ou não no CAR, é possível dividir as queimadas autorizadas daquelas ilegais na Amazônia.
“Não é permitido ter desmatamento autorizado legalmente em terra pública. Do mesmo modo, não existe fogo espontâneo, principalmente na Amazônia. Logo, este fogo em terras públicas é sinônimo de grilagem, de ilegalidade”, afirma Alencar.
“Não dá para aceitar fogo em áreas públicas. Ele é ilegal, é um atentado contra o patrimônio do Brasil”, diz.
Apesar de não terem sido destinadas para um fim, o professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que as terras públicas da Amazônia deveriam ser protegidas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“As terras públicas sem destinação são geridas por vários órgãos do governo federal, estadual ou municipal, sendo que o principal responsável é o Incra”, explica.
“O maior problema acaba não sendo a falta de destinação, mas a falta de fiscalização dessas terras da União pelo Incra. Vários relatórios já apontaram que, na prática, o Incra não intervém para expulsar os invasores”, explica o professor.
Caos fundiário
Segundo os dados do Inpe, 149.281 queimadas foram registradas entre agosto de 2019 e setembro de 2020 em toda a Amazônia. Com a diferenciação das terras, é possível fez onde o fogo queimou no período:
Áreas públicas sem destinação: 35,7%
Propriedades inscrita no CAR de de pequeno porte: 35,8%
Propriedades inscrita no CAR de médio porte: 13,3%
Propriedades inscrita no CAR de grande porte: 15,2%
Alencar destaca que não se deve confundir as terras de “pequeno porte” com aquelas sob responsabilidade de pequenos agricultores.
“Pequenas propriedades na Amazônia podem chegar até a 400 hectares. Ou seja, muitas delas bastante grandes para ser classificada como agricultura familiar, que em media tem 100 hectares”, explica Alencar.
A diferenciação é importante, segundo Alencar, para reforçar que não é verdadeira a afirmação de que eles são os responsáveis pela maior parte do fogo – como afirmou o presidente Jair Bolsonaro em uma conferência na ONU, afirmando que o ‘índio’ e o ‘caboclo’ eram responsáveis pelas queimadas na Amazônia.
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Além disso, a diretora do Ipam explica que a legislação permite que donos de média e grande propriedades na Amazônia fracionem o CAR dentro do seu imóvel rural em várias áreas menores, fazendo parecer que são terras de pequeno porte.
“A verdade é que todos queimam na Amazônia, pequenos, médios e grandes, pois o fogo é uma estratégia produtiva, mas que poderia ser diminuída ou desestimulada com investimento em politicas publicas que incentivem o bom manejo e boas praticas na produção”, conclui Alencar.
Quanto à diferenciação do Inpe das queimadas em terras com ou sem registro no CAR, o professor Rajão explica que qualquer pessoa pode registrar um imóvel rural no CAR pela internet, e não é preciso ter matrícula nem registro do imóvel.
“Por ser autodeclaratório, qualquer um pode declarar no CAR como sua uma terra indígena, por exemplo. Claro que posteriormente estes registros passarão por um processo de validação, mas, enquanto isso não ocorre, uma terra pública não destinada pode estar registrada como imóvel no CAR”, explica o professor da UFMG.
Por isso, segundo Rajão, é preciso considerar que muitas terras públicas sem destinação podem estar inscritas no CAR. “Isso quer dizer que, com certeza, o número de queimadas nas terras públicas sem destinação pode ser muito maior que o apontado pelo Inpe”, diz.
Fogo e desmatamento caminham juntos
A nova ferramenta do Inpe ainda permite relacionar as queimadas com áreas desmatadas.
45,4% (67.771) das queimadas foram em áreas de desmatamento recente – praticado nos últimos dois anos
40,4% (60.251) das queimadas foram em regiões de desmatamento consolidado – mais antigo que dois anos
Em agosto, uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) destacou que o fogo de manejo agropecuário é o tipo mais comum na Amazônia desde 2016, mas os focos de calor registrados em áreas recém-desmatadas cresceram, assim como os incêndios florestais.
A bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora nas Universidades de Oxford e Lancaster, explicou ao G1 na época que ambos os fenômenos – desmatamento e queimadas na Amazônia – não aconteceram de maneira dissociada nos últimos dois anos.
“No processo do desmatamento, o fogo é a etapa final, transformando em cinzas a floresta que ali estava, já que não tem como colocar boi ou plantar grão com todas aquelas árvores caídas no chão”, disse Berenguer.
O Imazon, instituto que faz pesquisas na Amazônia há 30 anos, apontou dois motivos que colaboram para o desmatamento ilegal recentemente. “O estímulo que está vindo do mercado e o enfraquecimento do lado da política na aplicação da penalidade, da fiscalização e da prevenção”, cita Paulo Barreto, pesquisador do instituto.
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