Encarecimento de um alimento essencial, existência de uma população economicamente fragilizada e manifestações violentas foram problemas no Japão, Libéria e Haiti. Sede de uma empresa produtora de arroz, Suzuki Shoten, queimada por manifestantes na cidade Kobe em 1918
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O aumento abusivo no preço do arroz, um dos alimentos mais consumidos no país, atingiu com força uma população empobrecida, gerando fome e uma revolta generalizada contra o governo.
O trecho tem semelhanças com o momento pelo qual o Brasil está passando hoje, em que o arroz, junto com alguns outros alimentos essenciais, vem pesando cada vez mais no bolso dos brasileiros.
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A frase, no entanto, se refere ao Japão de 1918, ano em que o preço do produto causou uma grave crise e protestos por todo o país, levando à renúncia do então primeiro-ministro japonês.
Em 1979, na Libéria, aconteceu uma história parecida. Dezenas de manifestantes que protestavam contra uma proposta de alta do arroz foram mortos pelas forças nacionais, desencadeando uma série de atos de revolta pelo país. Mais recentemente, multidões de haitianos foram às ruas protestar contra um salto nos preços desse e de outros itens básicos, como feijão e óleo de cozinha.
Alguns dos aspectos que se repetem em todos esses casos são o encarecimento de um alimento essencial, a existência de uma população economicamente fragilizada e manifestações violentas, que acabam por derrubar governantes.
Desde o início do ano, apesar dos baixos índices de inflação, o arroz acumula uma alta de quase 20% no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outros itens como feijão e cebola, também diariamente presentes na mesa do brasileiro, chegaram a subir ainda mais.
Embora pesquisadores apontem que o contexto social brasileiro é bem diferente e que revoltas como as que ocorreram no passado em outros países são muito improváveis por aqui, o incômodo do presidente Jair Bolsonaro com a situação se tornou evidente.
Se, quando a crise estourou, o mandatário tratou de pedir “sacrifício” e “patriotismo” aos donos de supermercados para não repassar o aumento ao consumidor, recentemente o governo anunciou que iria zerar o imposto de importação do produto até o fim do ano, numa tentativa de conter a alta dos preços e também uma possível reação negativa da população.
Tropas japonesas desembarcando em Vladivostok, na Rússia, em 11 de agosto de 1918.
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Revolta no Japão
No período final da 1ª Guerra Mundial, em 1918, o Exército Imperial Japonês enviou mais de 70 mil tropas para a Sibéria para lutar ao lado da França, Grã-Bretanha e do Exército Branco russo contra os bolcheviques. Para alimentar tanta gente em campo de batalha, o governo teve que lançar mão de grandes remessas de arroz.
“Prevendo que o governo aumentaria a encomenda, os comerciantes de arroz começaram a estocar o produto para forçar uma alta no preço, de forma a vendê-lo mais caro”, explica a especialista em cultura e história do Japão Cristiane Sato.
Só que a estratégia acabou desabastecendo a população nacional e levando às alturas o preço do arroz no país, que já lidava com uma inflação em alta devido à participação na guerra.
“Em 1918, 20 kg de arroz chegavam a custar quase o salário inteiro de um funcionário público”, conta Sato.
Na época, o arroz era o principal item da alimentação japonesa e representava 80% do consumido regularmente pela população em geral.
Em julho de 1918, quando a situação ia se tornando insustentável, os jornais noticiaram uma notícia curiosa, ocorrida num vilarejo da cidadezinha costeira de Toyama.
Lá um grupo de esposas de pescadores tentou impedir a exportação de grãos como forma de protesto contra os altos preços, provocando um tumulto com os comerciantes da região.
“É importante ressaltar o papel das mulheres nesses eventos. Eram donas de casa que estavam sofrendo com o aumento dos preços, da mesma forma que está acontecendo com muitas no Brasil hoje”, aponta Célia Sakurai, doutora em ciências sociais pela Unicamp e autora de livros sobre a história da imigração japonesa no Brasil.
Graças à imprensa, a notícia se espalhou rapidamente, inspirando várias outras manifestações pelo país, inclusive em algumas das cidades mais importantes, como Tóquio e Osaka.
Ao tomar proporções maiores, a revolta atraiu representantes de grupos ideológicos recentemente importados do pensamento ocidental, como anarquistas, nacionalistas, liberais e socialistas, aglutinando uma série de outras reivindicações sociais. O movimento não era mais só pelo preço do arroz.
Segundo a pesquisadora e doutora em ciências sociais pela PUC Luíza Uehara, o Japão tinha então uma grande população de miseráveis, tanto nas fábricas das grandes cidades quanto nas zonas rurais, condição que vinha gerando protestos frequentes havia mais de uma década.
“Foi inclusive por causa dessa miséria que os japoneses começaram a imigrar para o Brasil”, conta Uehara.
“Para se ter uma ideia, a propaganda para atrair os japoneses dizia que aqui eles conseguiriam comer arroz todo dia, coisa que lá nem sempre era possível”.
Nas ruas, o povo incendiou depósitos de arroz e atacou postos de polícia, o que gerou uma repressão severa das forças do governo, que temia ver uma nova revolução russa florescendo no próprio quintal. “Foram milhares de presos, muitos deles submetidos a castigos corporais”, diz a pesquisadora.
Depois de cerca de um mês de protestos, quando os ventos da revolta finalmente amainaram, o primeiro-ministro Terauchi Masatake anunciou sua renúncia, tomando para si a responsabilidade pelos distúrbios à ordem pública.
Aos poucos, com uma intervenção do governo, o preço do arroz voltou a um patamar aceitável.
“O governo passou a fazer um estoque preventivo do arroz, caso houvesse escassez do produto”, conta Silvio Miyazaki, professor do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da USP.
O político foi substituído no cargo por Hara Takashi, de perfil moderado, dando início a uma breve flexibilização do regime, que, apesar de democrático, era fortemente conservador e autoritário.
Logo no início da década de 1920, essa moderação perdeu lugar para o crescimento do militarismo e da opressão, que levariam o país à Segunda Guerra Mundial.
Golpe na Libéria
Mais de 60 anos depois desses eventos, a Libéria, um pequeno país na costa oeste africana originalmente criado para abrigar escravos americanos libertos, passou por uma convulsão social parecida.
No dia 14 de abril de 1979, manifestantes marcharam contra uma proposta do governo de aumentar o preço do arroz, visando tornar seu cultivo viável no país.
O protesto tinha orientação pacífica, mas alguns dos milhares de participantes começaram a saquear estabelecimentos locais. A polícia e o exército, por sua vez, reagiram a tiros, matando dezenas de pessoas e ferindo algumas centenas.
“Forças do governo perpetraram abusos como assassinatos, tortura e prisão arbitrária de civis. Além disso, há relatos de membros das forças liberianas tomando parte em saques ao lado de manifestantes”, diz um relatório da organização The Advocates for Human Rights sobre o caso.
Um dos principais motivos para a fúria popular era o fato de o presidente do país, William R. Tolbert, possuir fazendas de arroz e se beneficiar diretamente do aumento.
“Corria a ideia de que a intenção era favorecer uma elite que importava o produto ou os plantadores, dos quais fazia parte a família do presidente”, conta o professor de história da África da UFRJ Cláudio Costa Pinheiro.
Segundo uma reportagem do New York Times da época, no dia seguinte ao protesto Tolbert caracterizou os líderes do movimento como “homens maus e satânicos”, que só queriam “causar caos e desordem no país com o objetivo de derrubar o governo”.
Em pouco tempo, de acordo com Pinheiro, se proliferaram pela Libéria protestos cada vez mais violentos contra o governo, esgarçando o quadro político do país.
Às reivindicações alimentares, uniu-se a revolta contra uma estrutura antiga, que mantinha no poder uma elite liberiana privilegiada, de descendência americana.
Em 1980, um ano após as manifestações originais, o governo foi derrubado por um golpe de Estado, e Tolbert assassinado.
Em foto de 1980, o presidente da Libéria, Samuel K. Doe (óculos escuros), aparece cercado por membros de seu Conselho de Redenção dos Povos
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Tumulto no Haiti
A população do Haiti foi outra que se rebelou contra o aumento excessivo do valor do arroz, já no século atual.
Em 2008, atingidos por uma crise global que triplicou o preço do produto no mercado internacional, haitianos irados foram às ruas em manifestações que tiveram resultados violentos.
O aumento do preço, que chegou a dobrar o valor do produto no país, teve ainda mais impacto devido à pobreza e ao baixo nível de renda do povo haitiano, cuja maior parte sobrevivia com um salário de menos de dois dólares por dia, segundo informações do Banco Mundial.
Em abril, a população faminta da cidade de Okay entrou em conflito com agentes de paz das Nações Unidas.
Os protestos alcançaram outras cidades do país, onde os manifestantes passaram a apedrejar policiais e saquear lojas. O saldo final foi de seis mortos e vários feridos em todo o país.
Os protestos só acabaram quando o governo anunciou um plano para reduzir o preço do arroz e senadores removeram o primeiro-ministro Jacques-Édouard Alexis do cargo, dez dias após o início dos tumultos.
Em pronunciamento para a TV à época, o então presidente haitiano René Préval disse que “o arroz importado se tornou caro e nossa produção nacional está em ruínas. Por isso, subsidiar a importação de comida não é a resposta”.
A principal medida anunciada pelo governo para acalmar os manifestantes, porém, foi um subsídio ao valor do produto importado, derrubando seu preço em mais de 15%.
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