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Queimadas na Amazônia estão associadas a mais de 2 mil hospitalizações em 2019, diz relatório

Pesquisa de organizações sem fins lucrativos cruzou dados de internações por doenças respiratórias com poluentes produzidos em queimadas, mostrando uma situação preocupante especialmente para crianças e idosos. Gado pasta em meio à fumaça causada por um foco de queimada da Amazônia em Rio Pardo, Rondônia, em setembro de 2019.
Ricardo Moraes/Reuters
Além dos danos óbvios à fauna e à flora da Amazônia e da contribuição para as mudanças climáticas, os incêndios no bioma, causados pela ação humana, colocam em risco um outro bem inestimável: a saúde da população.
Este é o alerta de um relatório publicado nesta quarta-feira (26/08) pelas organizações Human Rights Watch, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
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Para demonstrar os efeitos das queimadas na saúde, a análise mapeou hospitalizações relacionadas à poluição em municípios abrangidos pelo bioma em 2019, ano que teve o maior pico em área desmatada desde 2017 e a segunda maior alta em focos ativos de incêndio desde 2016, de acordo com dados incluídos no relatório.
O trabalho calcula pelo menos 2.195 hospitalizações por doenças respiratórias relacionadas às queimadas, das quais 467 (21%) envolvendo crianças de 0 a 12 meses e 1.080 (49%) idosos com mais de 60 anos.
“A fumaça é repleta de material particulado, um poluente ligado a doenças respiratórias e cardiovasculares, assim como a mortes prematuras. Crianças e idosos, além de grávidas e pessoas com condições crônicas no pulmão e coração, são especialmente vulneráveis”, explica o documento.
Foi calculado ainda que, em agosto de 2019, aproximadamente 3 milhões de pessoas em 90 municípios da Amazônia foram expostas a níveis de poluição do ar acima do limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS); em setembro, o número cresceu para 4,5 milhões de pessoas em 168 municípios.
De acordo com os autores, incêndios não acontecem naturalmente na floresta amazônica — são instrumentos de desmatamento, muitas vezes ilegal, com a finalidade de liberar áreas para a agropecuária ou para a especulação fundiária.
E, segundo os autores, não é necessário estar muito perto da fumaça para que ela tenha efeitos negativos. “Os impactos na saúde de queimadas relacionadas ao desmatamento na Amazônia podem ser observados distantes dos focos de incêndio”, diz o trabalho.
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Os números do relatório foram resultado de cálculos combinando informações do DataSUS, portanto incluindo apenas internações no Sistema Único de Saúde (SUS); a concentração de poluentes nos municípios, sobretudo o chamado PM2.5 (material particulado com diâmetro menor que 2,5 micrômetros, fortemente correlacionado a queimadas na Amazônia e com consequências para a saúde bem conhecidas na literatura), mas também CO, NO2 e SO2; e também o controle de dados sobre chuva, temperatura e umidade, para afastar a influência destas variáveis climáticas no resultado final.
‘Problema que pode ser controlado com medicação é piorado pelo meio ambiente’
Na distribuição mensal de casos, o número de hospitalizações ligadas às queimadas foi menor entre janeiro e julho, quando normalmente há mesmo menos focos de incêndio e também condições climáticas menos propícias à ocorrência de doenças respiratórias — na região, é em maio, por conta da seca, que elas pioram.
As hospitalizações mapeadas começaram a crescer entre julho e agosto, ficando altas mesmo depois de outubro até o final do ano, “provavelmente por conta da contínua presença de poluentes no ar, assim como (a presença destes) nos pulmões e correntes sanguíneas de pessoas que inalaram a fumaça”, diz o relatório.
Os números são considerados conservadores, porque incluem apenas o sistema público de saúde e também porque possivelmente uma parcela relevante de pessoas afetadas pela fumaça não chega a buscar hospitais.
O relatório reconhece também que só é possível falar de uma correlação entre fumaça e doenças respiratórias, mas não uma causalidade — uma relação de causa e efeito, normalmente mais difícil de ser provada.
Mas, no trabalho, os dados foram reforçados por depoimentos de 67 profissionais de saúde, membros de governo e pesquisadores da Amazônia, escutados pela Human Rights Watch — que ficou responsável por estas entrevistas, enquanto o IEPS pelos cálculos sobre saúde e poluição e o IPAM, pela análise de dados sobre desmatamento e focos de incêndio.
“As condições são mais graves conforme a idade das crianças diminui”, disse aos pesquisadores o diretor associado de um hospital infantil, falando sobre pequenos com doenças pré-existentes. “Recém-nascidos prematuros e bebês usando suporte respiratório são muito vulneráveis.”
Uma médica de família atuando em Rondônia citou outros grupos vulneráveis que precisaram de atendimento: “Na emergência pediátrica e em unidades básicas de saúde, há um aumento na demanda de indígenas, crianças e idosos (com as queimadas). Para pacientes que já têm condições respiratórias, se torna exacerbado. Um problema que pode ser controlado com medicação é piorado pelo meio ambiente.”
Fabio Tozzi, que coordena um projeto de assistência em saúde para 15 mil indígenas e povos tradicionais no Pará, relatou casos de falta de ar, alergias, bronquite e asma. Indígenas são considerados particularmente vulneráveis à fumaça pela grande prevalência de doenças respiratórias nestas populações, e estas doenças são uma das principais causas de mortalidade infantil entre elas.
Críticas ao governo federal
O relatório faz recorrentes críticas ao governo do presidente Jair Bolsonaro, cujo primeiro ano de mandato, justamente 2019, coincide com um aumento de 85% do desmatamento na Amazônia, segundo análise a partir do sistema de monitoramento por satélites Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Há ainda a apresentação de dados preliminares de 2020 que antecipariam uma piora nos incêndios florestais, na comparação com 2019: por exemplo, julho de 2020 teve 28% mais focos registrados do que o mesmo mês do ano passado.
Ane Alencar, diretora de ciência do IPAM, destaca também que, na comparação com o ano passado (agosto de 2018 a julho de 2019), houve alta de 34% em área desmatada na Amazônia (agosto de 2019 a julho de 2020).
“Para mim, o que explica a alta dos focos de incêndio no ano passado foi… uma afronta. A impunidade acabou sendo estimulada por várias falas do presidente, e os proprietários rurais realmente se sentiram livres para cometer ilícitos ambientais sem medo de serem punidos”, avalia.
Ela explica que há três tipos de “fogo”: aquele usado para abrir novos terrenos; aquele que limpa a pastagem de uma área já aberta; e aquele que surge como consequência destes dois primeiros, os incêndios florestais.
O vice-presidente, general Hamilton Mourão, está à frente das ações do governo no meio ambiente, como do recém-criado Conselho da Amazônia. Em entrevista à BBC News Brasil na semana passada, respondendo a uma pergunta sobre o aumento de 34% na área desmatada, Mourão afirmou que “a floresta não está queimando”: “O que está pegando fogo é aquela área que já foi desmatada, e aí cresce mato de novo, o pessoal corta, taca fogo.”
Mas, segundo Ane Alencar, ainda que a limpeza com fogo de áreas já desmatadas seja conhecida, a prática está “longe de ser majoritária” na causa de desmatamentos e queimadas.
“A maioria dos focos tem sido em áreas recém-desmatadas ou nas bordas das florestas”, explica, acrescentando que isso pode ser visto com o cruzamento de dados de áreas de floresta ao longo do tempo e de desmatamento recente, além de inúmeros relatos do que é observado em campo.
“Hoje, estamos em um momento crítico de queimadas na Amazônia, e isso tem impacto para a saúde das pessoas. Nesse mês, temos uma média de 1.000 focos por dia, então podemos chegar a 30 mil no fim de agosto”, diz, lembrando também que outro bioma, o Pantanal, “extrapolou” neste ano todos os recordes de incêndios.
Já frágil, estrutura de saúde no Norte ficou mais vulnerável com queimadas e pandemia
O impacto do fogo para saúde é ainda mais preocupante em uma região já enormemente desfavorecida neste tipo de assistência, diz Miguel Lago, diretor-executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
“Celebramos o valor do SUS, o fato de ser inédito para um país em desenvolvimento (como o Brasil) ter um sistema público como esse. Mas existe uma profunda desigualdade na oferta de serviços por regiões, além de uma concentração nos grandes centros”, aponta, lembrando que na região amazônica os deslocamentos frequentemente são longos e não rodoviários.
Lago cita uma pesquisa recente de seu instituto, no contexto da pandemia de coronavírus, mostrando que a oferta de médicos intensivistas, anestesistas e cardiologistas seria atingida logo com taxas muito baixas de infectados na região.
Nos cenários hipotéticos testados na pesquisa, de maio, taxas de infecção populacional igual ou abaixo de 2% levariam todos os Estados do Norte a atingirem o seu limite no número de médicos necessários para tratar casos graves; no Nordeste, taxas de infecção inferiores a 4% poderiam levar a esse esgotamento. O Sudeste e Sul apresentam uma taxa média mínima de 6,3% e 5,3% de infectados.
“Estamos vivendo uma pandemia que afetou principalmente a região Norte, e isso inclusive pela composição das ofertas de serviço (de saúde). Então, se a pandemia é somada às queimadas, acreditamos que isso vai contribuir para o colapso hospitalar da região”, diz, lembrando que, além das dificuldades de acesso no sistema público, o mercado privado não demonstra muito interesse em investir na região.
“O desmatamento, que é evitável, só contribui para o colapso de um sistema já bastante frágil.”
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